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Festival de Curitiba

“Desfazenda”: uma peça-slam com ares cinematográficos

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Por Carlos Canarin

É fato: o teatro negro é uma linguagem cênica em constante expansão, principalmente ao pensarmos nas produções que foram feitas na década passada e no que está sendo produzido já nesta. É impossível falarmos de teatro contemporâneo brasileiro sem falarmos dos grupos de teatro formados majoritariamente por artistas negras e negros, seja na instância da atuação e da performance, seja nos outros setores que formam a maquinaria teatral.

A curadoria do Festival de Curitiba se mostra antenada e por dentro destes movimentos contemporâneos: da Mostra Lúcia Camargo, considerada como a Mostra Oficial do evento, das vinte e sete peças que a compõem, três delas são produções feitas por grupos negros. Ainda assim, da mesma forma que podemos ressaltar a importância de tais espetáculos estarem compondo a Mostra e ocupando os principais teatros da cidade, também temos que refletir criticamente sobre a escassa presença de peças negras e que tais espetáculos são produções de fora da cidade – e advém somente da região sudeste do país (duas de São Paulo, uma do Rio de Janeiro).

Lembro também que o teatro negro não é um movimento novo; pelo contrário, os primeiros registros de grupos teatrais negros são da segunda década do século XX, com os teatros de revista negros (a Bataclan Negra e a Cia Negra de Revistas são exemplos). É só na década de 40 que a primeira companhia teatral preocupada em mudar os paradigmas quanto à representação do sujeito negro no teatro é fundada: trata-se do Teatro Experimental do Negro, liderada por Abdias Nascimento, importante ativista do movimento negro brasileiro. Ainda, se formos nos ater à produção dramatúrgica, o primeiro dramaturgo negro que se tem registro é Machado de Assis (1839-1908), que ainda hoje é representado enquanto um escritor branco.

Feitos os apontamentos acima, voltemos ao Festival. “Desfazenda – me enterrem fora deste lugar” é um dos três espetáculos negros que compõem a mostra oficial. A peça, que é uma adaptação teatral da peça-filme homônima estreada em 2021, dá um passo a mais na pesquisa teatral desenvolvida pelo coletivo paulistano O Bonde, que iniciou com a montagem do espetáculo infanto-juvenil “Quando eu morrer vou contar tudo a Deus” (dramaturgia de Maria Shú e direção de Ícaro Rodrigues, que estreou em 2019). Se na primeira peça do grupo encontramos como mote a migração forçada de um menino africano rumo a um lugar melhor e sua tentativa de reencontrar seus pais, agora estamos encarando uma outra realidade.

O enredo do espetáculo nos apresenta uma fazenda onde quatro crianças são mantidas escravizadas por um padre (branco) que as sequestrou de seus genitores, mantendo-as sob o pretexto de que fora dos limites daquele lugar estava acontecendo uma guerra e de que aquele era o lugar mais seguro para elas ficarem. As quatro personagens vividas pelos três atores e pela atriz não possuem nomes comuns; são tratadas apenas por números (12, 13, 23 e 40). Mesmo trazendo crianças à cena, “Desfazenda” difere de “Quando eu morrer”, pois é voltada ao público adulto, principalmente por seu teor mais denso e por aproximar infância e escravidão a partir do texto de Lucas Moura e do documentário “O Menino 23”. Apesar de mencionado nas falas das personagens, nunca vemos a figura do padre, muito menos do primeiro menino que chegou naquela fazenda, conhecido pelo número 0. Mesmo assim, conhecemos eles através da visão das quatro crianças que conduzem a narrativa. É possível notarmos também que, apesar de interpretarem personagens específicos, os atores e atriz também interpretam a si mesmos ao iniciar e finalizar o espetáculo, trazendo suas próprias vozes ao contextualizar alguma situação – mecanismos épicos já utilizados anteriormente nos textos dramatúrgicos de Jhonny Salaberg (que aqui interpreta a personagem 12), por exemplo.

A narratividade é o fio condutor da ação dramática, que possui ainda a inserção de diálogos conforme as personagens vão interagindo umas com as outras. O texto é um primor; enquanto público, conseguimos identificar bem as personagens que habitam esse campo de concentração, explorando suas individualidades e como elas enxergam a realidade a qual estão inseridas, se relacionando entre si a partir do que vai surgindo enquanto curiosidade vai tomando conta e as incertezas invadem. O mistério e os signos postos na dramaturgia colaboram para a discussão sobre o genocídio negro e sobre a permanência do racismo e da escravização de corpos, não de forma didática, mas sim avançando e agindo num campo mais simbólico, sígnico, do que somente discursivo. Centrado na construção rimada, o texto é potencializado pelo trabalho de Spoken Word (palavra falada), técnica explorada pela diretora Estrela D’Alva, que aproxima Desfazenda do slam.  O uso de samples musiciais faz com que faz até lembrarmos de outras peças que exploram a musicalidade e os samples musicais, como por exemplo a “Farinha com açúcar” , dramaturgia de Jé Oliveira a partir das obras dos Racionais MC’s que foi montada pelo Coletivo Negro (SP).

Um dos momentos mais notáveis da peça é quando os quatro atores levam o público para fora do teatro para enterrar uma das personagens. Uma vez do lado de fora, atravessamos a rua com o elenco até a esquina mais próxima, onde um ebó (um ritual das religiões afro-brasileiras, que consiste numa oferenda para sepultar, curar, pedir boas coisas, etc.) é feito. O elenco também convoca o público para que participe e ajude no enterro, pegando com as mãos a terra que está em um dos vasos. A montagem então se encerra, com um ebó feito numa esquina de Curitiba, cidade conhecida por seus reiterados episódios de racismo.

O espetáculo é coeso e executado de forma exímia em todas as suas funções, que se conversam a todo instante; é possível notar a incrível execução das propostas estéticas que compõem a estrutura cênica. O destaque aqui vai para a atriz Marina Esteves, que tem momentos de brilho intenso ao interpretar a única menina do espetáculo que sofre constantes violências; para o ator Ailton Barros, que nos apresenta uma cena bastante emotiva que humaniza a personagem 0 no envolvimento homoafetivo das duas personagens; e para a direção de Estrela D’Alva, que nos brinda com uma condução bastante sensível, ritmada e cheia de signos e sensações. A cenografia consiste na criação imagética feita principalmente pela iluminação, já que não há nenhum tipo de objeto ou estrutura de cenário no palco, o que dá à movimentação dos atores a possibilidade de criar um jogo de construção e desconstrução imagética numa parceria junto com a iluminação e a sonoplastia que são muito bem executadas, num tom que se aproxima bastante de produções cinematográficas. O figurino serve bem para a proposta estética feita, é versátil e conversa com as particularidades subjetivas de cada personagem.

Por fim, ressalto a importância de tal espetáculo ser apresentado na cidade de Curitiba, afinal é fato as tentativas de apagamento histórico da contribuição negra na cidade. Mesmo que a plateia não fosse majoritariamente negra, o espetáculo se destina a todos, sem distinção, e contribui de forma sensível na luta antirracista, incluindo o público presente a refletir sobre tais temas na busca para que essas realidades sejam, algum dia, ultrapassadas. Não se trata de um espetáculo para o público negro; ao contrário, está voltada a todos, principalmente pessoas não-negras, para que reflitam sobre tais eventos que estão cada dia mais próximos de nós.

“Desfazenda – me enterrem fora deste lugar” é um espetáculo derivado da peça-filme de mesmo nome e que estreou em 2022 pelo Coletivo O Bonde (SP) com direção de Roberta Estrela D’Alva, dramaturgia de Lucas Moura, direção musical de Roberta Estrela D’Alva e Dani Nega. O elenco conta com Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves. A cenografia e o figurino são assinadas por Ailton Barros. O desenho de luz é assinado por Matheus Brant. A produção é de Jack dos Santos – Corpo Rastreado.

Crédito foto: José de Holanda

 

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