Colunista
“De tantas ceias, talvez a última”, uma crítica da Última Ceia, do Grupo Mexa
Noah Mancini
O espetáculo A Última Ceia, assim como tantos outros trabalhos de arte, propõe uma releitura da Santa Ceia. Conhecemos bem aquele quadro de da Vinci, aquela cena religiosa que está perpetrada em lares, livros. O Grupo Mexa, que existe há mais de uma década e que marca entre suas últimas produções a peça Poperópera Transatlântica, acaba de estrear na Casa do Povo sua mais nova produção.
Tudo começa com o argumento que este será o fim. O que estamos a assistir é a última peça do grupo. Houveram tantos outros grupos, outros tantos dizeres, disseram o que haveria de acontecer antes mesmo que ocorresse, ao mesmo tempo que entoaram seus próprios destinos. Nesse jogo-luta entre o que é real, da vida delas, do que é ensaiado e do que é inesperado, as apóstolas projetam seus versículos postulados em salmos do fim.
Iniciando as iluminuras sagradas de um tempo remoto, guiando uma travessia complicada, congregamos sem perceber o início de uma trajetória cosmológica. A voz antológica narradora milenar de Aivan, de perspectiva observadora na terceira pessoa, nos faz sobrevoar em atmosferas bíblicas, de tempos outros todavia de tempos eternamente etéreos, pois alguns cairão aos lados, mas a história e a verdade da vida haverão de ser passadas. Nata contadora de histórias, essa característica de Aivan, que pode ser notada em outros trabalhos antecessores, se acentua com o teor do texto, que traça homéricos percursos sobre nossas leituras.
A mescla de mídias, como a projeção, a gravação ao vivo, nos coloca em contato com imagens processuais, dos meandros do fazer criativo, estreitando ainda mais as questões íntimas do elenco. As discussões, por mais editadas que sejam, são apresentadas, de acesso a um arquivo sensível, premeditadamente registrado mas ocasionalmente performado.
A participação de Patricia Borges cumpre o papel da anti-peça, o poder da oposição. Para ela a peça está chata, a apresentação enfadonha, não quer decorar textos de tal balela desinteressante. Aquilo tudo não passa de uma grande pataquada, em suma: isso não é teatro de verdade.
Uma contra-regra entra com um holofote na peça e passa a iluminar determinadas sequências, andando pelo espaço cênico. Essa dramaturgia do improviso, que coloca tanto a plateia quanto os próprios atores em não lugares, faz um iô-iô entre o que está acontecendo de verdade? O que foi premeditado, o que surgiu no momento? De uma peça que, segundo dizem, será a última.
A reflexão sobre o fim é colocada de maneiras distintas, muitos podem ser os sentidos, os porquês, as formas dos fins. Nessa atividade de contar sobre eles, está o meio da coisa, em gradativa decadência, e também está a maneira como o fim se dá. A partir de certa altura, muitos possíveis fins ali se dão, como um quase fim, um final que quase chega, mas ainda dura tempos. A farta ceia é servida e filmada, uma entra e canta, outra entra depois e canta outra canção, a outra convida alguém para dançar, o elenco todo diz três quase verdades como Jesus disse na tal ceia, a estrondante Patricia Borges finalmente entra retumbante emergente de dentro de um bolo e faz sua dublagem como profetiza no início da peça.
A continuidade, que aparenta sempre terminar em grand-finale, mas ainda guarda uma próxima enunciação, retira a importância dada ao fim de algo, porque a palavra e o estado de presença que evocamos quando a vivemos é quase eterno, não nos desespera tanto. Assim é quando levamos o emulante bolo do aniversário da cidade de São Paulo para casa, um bolo de metros que os convidados também podiam se servir e carregar para suas residências em potinhos e guardanapos, prolongando a hóstia dos corpos de muitos Judas e Cristos que ali estão. Vamos jantar e ceiar, vamos ser filmados, vamos decidir pela força dos aplausos quem interpretará Judas na ceia última. Mas também somos orbitados para participar de tais juízos finais.
Eis o dilema da interpretação de Judas: Jesus ninguém iria ser, melhor representação que uma cadeira vazia com um spot de luz vindo de cima não há, deixemos aquele espaço vazio. Mas Judas seria muito mais coerente, por que não o suposto antagonista – e principal delator da traição, da morte e ressurreição de Cristo, vulgo JC – de um mito hegemônico? O lado oposto e infiltrado nas forças cristãs. Inicia-se uma argumentação, de um por um, porque merecem interpretar Judas nessa cena, e a decisão é definida pela força catártica da mais ovacionada.
Outro ponto alto é a briga entre Laysa Elias e Tatiane Arcanjo, que comentando com minha amiga que assistiu em apresentação anterior, não sabe se teve no dia que ela foi, mas para mim aquele momento me pareceu muito real. Muita gritaria, baixaria. Achei de fato que alguma coisa ia cair, quebrar, e a apresentação viria abaixo. A própria desavença cênica se delongou, em disses-me-disses, muxoxos expelidos após a poeira abaixar. É o ad infinitum do conflito, sobrevivente a qualquer mediação.
Mas acima de tudo e de todes, há de reinar a bonança. Dai aos povos, em sua própria casa, o que é dos povos. Chegando ao fim da peça, elas armam uma ceia farta, um banquete: colocam pratos, copos e talheres metálicos sobre o palco que performam e postam cadeiras para o público se sentar. Ornam um mise en scene propício à participação. Gradativamente os assentos são preenchidos pela plateia e a equipe serve a refeição para os presentes: frangos inteiros assados, pães e vinhos, patês, morangos, melões, pitaias, melancias e até cuscuz paulista. Não há Jesus e não somente as apóstolas ceiarão, quem vai comer também serão vocês.
O trabalho é recheado de ironias, tiração uma com a cara da outra, amigas e rivais. Ao retomar a lenda cristã, deparamo-nos com imagens fundadoras e também exauridas. Individualidades postas na mesa, para refestelar-se com as tamanhas particularidades e conflitos na alteridade: depoimento dramaturgia, documental delirante, diálogos duvidantes, fúria e felicidade, festa e fadiga, fome e fartura.
Vamos encenar as desavenças, mas elas são tão reais que não conseguem tornar-se ficções, são meta-mentiras: o buchicho, o verídico. A cena que ali está, o espetáculo que se desenrola e compartilha seu próprio percurso, de fato será o último – mas também o único. É na singularidade desse encontro que se torna especial realizá-lo, pois assim como A Santa Ceia, esses motivos construídos no ato da partilha com um, mais, vários, na refeição, no bate-boca, podem durar alguns milênios mal resolvidos. E sempre se repetirão, assim como os fins e os inevitáveis começos.
Foto: Laysa Elias.
FICHA TÉCNICA
Criação: MEXA
Direção e dramaturgia: João Turchi
Performance e co-criação: Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz e Tatiane Arcanjo
Vídeo performer, criação de vídeo e direção técnica: Laysa Elias
Assistência de direção e de movimento e performance: Lucas Heymanns
Trilha sonora, sound design e performance: Podeserdesligado
Luz e performance: Iara Izidoro
Produção executiva: Francesca Tedeschi
Produção e direção de arte: Lu Mugayar
Produção da temporada: Cibele Lima e Leonardo Monteiro
Figurino: Anuro Anuro e Cacau Francisco
Cenário: Vão
Direção vocal: Dourado
Integraram parte do processo criativo: Anita Silvia, Daniela Pinheiro e Gustavo Colombini
Colaboração dramatúrgica: Olivia Ardui
Pesquisa e consultoria artística: Guilherme Giufrida
Produção: MEXA
Coprodução: Kunstenfestivaldesarts, Casa do Povo, Kampnagel – Internationales Zentrum für Schönere Künste
Agradecimentos especiais: Esponja, Ana Druwe, Benjamin Seroussi, Marcela Amaral, Felipe Martinez
SERVIÇO
A Última Ceia
De 17 de outubro a 3 de novembro
Quinta a sábado, às 20h e domingos, às 19h
Local: Casa do Povo – Rua Três Rios, 252, 1º andar, Bom Retiro, São Paulo, SP
Classificação: Livre | Duração: 100 minutos