Cinema
Curitiba recebe o IV Festival de Cinema Negro Contemporâneo
O evento é gratuito, acontecerá nos espaços do Cine Passeio, Cinemateca, Paço da Liberdade, com sessões online na Todes Play
De 12 a 18 de outubro acontece o Griot – IV Festival de Cinema Negro Contemporâneo, a edição apresenta pela primeira vez as atrações de forma presencial em locais históricos da região central de Curitiba. Na programação haverá mostras – exibição de curtas e longas – nacionais e internacionais, o filme de abertura será “Marte Um” de Gabriel Martins, escolhido para iniciar o “Tempo de Ajeum”, mote e conceito do festival deste ano.
Nesses sete dias de sessões e atividades que envolvem laboratório de desenvolvimento de roteiro, oficinas e mesas temáticas, a Cartografia Filmes, realizadora do evento, se comprometeu em estruturar uma programação diversa com foco na produção de cinema com realização e protagonismo de pessoas negras.
As oficinas deste ano contam com a potência, estudo e desenvolvimento da documentarista e pesquisadora Lilian Solá Santiago, da atriz, diretora, professora, dubladora e apresentadora, Rejane Faria e da diretora artística do festival Griot, Bea Gerolin. Os estudos serão sobre um mergulho na produção de roteiro para documentário, atuação e criação de presença cênica e construção de conceitos de direção de arte e composição de cenários.
A Mostra Competitiva de Curtas Brasileiros possui uma premiação especial de R$10 mil reais em serviços de pós-produção para o filme vencedor na categoria Melhor Filme. Segundo a coordenadora de Curadoria e Programação do festival, Kariny Martins, “os 14 filmes que compõem a Mostra Competitiva do IV Griot, se encontram e se colidem, formando um conjunto de filmes singulares que nos levam a pensar quais cinemas negros são possíveis. Quais narrativas podem se sobrepor a um mundo fundado em símbolos que, para nos permitir avançar, precisam ser revistas e reimaginadas?”.
Questão trazida pelo mote deste ano em “Tempo de Ajeum” que se concentra no processo em construção que é o cinema negro: o fazer/fazendo-se, feitura cotidiana, constante, que se inscreve em cada obra e cada pessoa que produz um recorte, uma janela para compartilhar sua visão e desejo de mundo.
Ajeum é a palavra utilizada para o ato de comer, de se alimentar nas religiosidades de matrizes africanas, mas é muito mais do que isso: é integração entre os que dividem o alimento, entre energia e sujeito, entre tudo que os elementos envolvidos na feitura dessa comida carregam, sejam eles animais ou vegetais. Acredita-se, dentro da espiritualidade iorubana, que levamos um pouco do axé (energia vital) de tudo que nos alimentamos, seja concreta ou simbolicamente.
“Tempo de Ajeum é um chamado, um pedido de atenção para o que colocamos dentro da gente, um olhar para a espiritualidade como maneira de reconexão e inspiração. É também uma reverência ao alimento, à terra, à natureza, e a tudo de nutritivo e potente que saem deles”, explica Bea Gerolin.
Algumas sessões e bate-papos serão traduzidos em libras e para quem não estará em Curitiba haverá sessões de filmes disponíveis online na plataforma Todes Play.
Aproveitando o feriado de dia das crianças, há na programação sessões matinê da Mostrinha, acompanhe pelo site do Festival Griot as atividades que acontecem simultaneamente no evento, detalhes dos convidados, curtas, longas e selecionados.
MOSTRAS
A programação da 4 edição do Griot inclui a Mostra Competitiva de Curtas Metragens Brasileiros, a Mostra Panorama com filmes realizados por Lilian Solá Santiago, a Mostra Entremares com filmes da diáspora, a Mostra Foco Nigéria e a Mostrinha Griot, que apresenta filmes infantis. Além disso, contém uma série de debates, mesas, oficinas e um laboratório de roteiro de curtas e longas metragens.
MOSTRA COMPETITIVA
Três anos separam a III e a IV edição do Griot – Festival de Cinema Negro Contemporâneo. 2020 foi o primeiro ano em que o festival se adequou ao formato de mostras competitivas e passou a ter um processo de seleção de curtas-metragens brasileiros. Nas edições anteriores, a programação era construída a partir de pesquisa de filmes dirigidos e protagonizados por pessoas negras que estivessem em circulação em festivais ou mostras nacionais e internacionais. Essa mudança no formato do nosso festival nos trouxe uma série de questionamentos acerca do pensamento de cinema negro estabelecido nos circuitos de exibição e nos levou a perceber certos condicionamentos de leitura ao que era entendido como “cinema negro”.
Nestes últimos cinco anos – entre a I e IV edição – alteramos a rota. Enquanto sociedade, modificamos e reestruturamos caminhos e o cinema não ficou à parte dessas mudanças. A própria noção de cinema se atualizou nesse meio tempo, a partir de lacunas de investimento, produção, exibição e imaginação. Como pensar e imaginar histórias se a própria condição de tempo-espaço está suspensa? Com paralisações e retomadas, as disputas sobre Brasil se tornaram cada vez mais evidentes, restabelecendo outros sentidos para o que chamamos de Cinema Brasileiro e, consequentemente, de Cinema Negro. A partir dessas mudanças, um dos aspectos que se firmou enquanto norteador para esta IV edição veio a ser: por onde estamos caminhando com os cinemas negros?
Nesta edição, o Griot – Festival de Cinema Negro Contemporâneo se dispõe a se aproximar do que os mais de 250 filmes inscritos estão tentando investigar enquanto cinema negro. Além disso, buscamos dimensionar qual é o lugar de um festival de Cinema Negro contemporâneo em 2023, levando em conta as dinâmicas envolvidas nos processos de distribuição e circulação dos filmes, suas estéticas, o diálogo com o público, mas talvez principalmente sobre os pensamentos e discussões que envolvem a curadoria de um festival. Desta forma, a pergunta “qual Cinema Negro desejamos?” foi uma observação circunscrita nas discussões que levaram a construir a programação da IV edição do Griot. Conceber uma mostra competitiva voltada para curtas-metragens é uma ação que rapidamente nos aproxima da cadeia produtiva de profissionais negres no audiovisual, uma vez que esse acaba sendo o formato possível para pessoas negras contarem suas histórias e deslocarem o sentido de cinema ao propor diferentes relações através das imagens e dos sons. No entanto, acompanhamos uma remessa de filmes que têm, como reflexo, um cinema negro em descoberta, um movimento que lança suas histórias ao mundo a partir dos nós, das entranhas de um Brasil corrompido e ferido, um Cinema Negro fruto do seu tempo, que tem políticas públicas como alicerce e histórias não contadas como demanda.
Reunimos 14 curtas-metragens na Mostra Competitiva, divididos em três sessões de proposições e ritmos particulares. A seleção não se organiza apenas no sentido inicial de afirmação do campo, que tendia a configurar métrica qualitativa dos filmes entre “bom” e “ruim” ou “filme de festival” versus “exercícios fílmicos”: caminhando pela imaginação, nutrição e realização dos filmes, ela segue da ideia à imagem, passando por múltiplas experimentações e formas de lidar com a linguagem do cinema. O que chamou atenção durante as conversas de curadoria foram os gestos fílmicos ou audiovisuais que produzem expansões e aprofundamentos na própria noção de Cinema Negro brasileiro como um campo estabelecido ou um referencial concreto, que se aproxima ou se afasta a partir do que a mediação dos olhares de curadoria e de público esperam (ou não) desses filmes.
É possível perceber, entre os programas, desejos de conversação entre as obras e a possibilidade de provocar um tensionamento propositivo que, no limite, nos faz crer e verificar que existe movimento adiante, que o que se pensa como Cinema Negro está, mesmo em contextos de precarização e da recorrente sensação de urgência acerca de discussões estruturantes do mercado e do capital especulativo de festivais, em desestabilização. Muitos deles são filmes que já não se limitam a preceitos de um certo ideal formal ou estético que se pretende (ou pior, que se deve) alcançar, mas processos de construção que se arriscam a viver uma independência criativa. Filmes que provocam as formas condicionantes e que consagram seus intuitos ao partilhá-los com um festival de cinema negro, entendendo não apenas o que se fomenta sob perspectivas institucionais (um festival como esse alimenta pessoas negras, paga contas de pessoas negras, subsidia elementos de dignidade que muitas vezes estão fora das equações estruturais), mas cognitivas e intelectuais, sabendo que circularão aqui, entre nós, discussões que ainda passam ao largo de espaços aparelhados e filiados por uma cultura cinematográfica herdeira dos delírios da universalidade. Os filmes aqui circulados elaboram, em última instância, uma esfera pública de debate e de apreciação, de conforto ou de confronto, mas que é viva, é agora, é espontânea e, talvez o mais importante, é cada vez mais imprevisível.
Equipe Curatorial:
Bruno Galindo
Gabriel Borges
Kariny Martins
Lorenna Rocha
MOSTRA ENTREMARES
A Mostra Entremares desempenha um papel fundamental na ampliação dos horizontes culturais e na promoção da diversidade, trazendo filmes realizados por pessoas pretas na diáspora, e, ao fazê-lo, destacando a importância de olhar para além das fronteiras geográficas, refrescando e atualizando nossos olhares como realizadores e espectadores negros.
“Entremares” evoca a ideia de estar lá e cá, entre culturas e territórios, entre experiências e cotidianos, e é exatamente isso que esta mostra busca explorar. Ela nos convida a mergulhar nas águas profundas das narrativas negras que se estendem para além de nossas fronteiras locais e nacionais, mostra que, enquanto seres diaspóricos, nossas histórias e vivências são interconectadas.
Dividida em duas sessões, a Mostra traz o longa metragem “Public Toilet Africa”, de 2021, do realizador Kofi Ofosu-Yeboah, nascido em Gana, onde gêneros se misturam na criação de uma obra circular e inovadora, referenciando cinemas africanos e afro americanos com um olhar fresco contemporâneo. Apresenta também uma sessão com os filmes “Sur le fil du zenith,” “Body Language,” e “Mama dan so que sorriso”, cada um deles trazendo uma perspectiva única e poderosa sobre a experiência negra na diáspora, entrelaçando memória, construção de identidade, ressignificação do luto e principalmente: a possibilidade de contar a própria história.
MOSTRA FOCO – NIGÉRIA
A cada ano, o Festival Griot seleciona um país do continente africano para destacar em uma sessão especial, e em 2023, a Mostra Foco trará um inovador representante do cinema nigeriano contemporâneo.
Foi escolhido para este ano o filme “Mami Wata,” do realizador C. J. Obasi. Com uma narrativa apurada e um mergulho profundo nos mitos locais, “Mami Wata” traz a riqueza da herança cultural da Nigéria e, ao mesmo tempo, desafia as expectativas sobre o que o cinema africano pode ser. É uma obra que amplia horizontes, convidando o espectador a explorar novos territórios emocionais e estéticos, destacando não apenas a Nigéria como um polo de inovação cinematográfica, mas também a capacidade dos cinemas africanos de emocionar, intrigar e fazer repensar as próprias perspectivas culturais.
MOSTRA PANORAMA– LILIAN SOLÁ SANTIAGO
“Não negociamos nosso direito à memória, nem como preto, nem como brasileiros”. Essa frase encontrada em um texto de posicionamento da APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro) no contexto do incêndio de parte do acervo da Cinemateca Brasileira em São Paulo, em 2021, pode ser um lembrete sobre o que constitui boa parte do cinema negro brasileiro: o direito à memória e o de ver e de ser visto. Se há uma lacuna na história do cinema brasileiro é a da preservação, etapa fundamental para entendermos quem fomos, quem somos e quem poderemos ser enquanto nação. Não à toa isso acontece em um país que constrói sua história a partir de apagamentos e recortes, como é o caso da história da população negra brasileira. Se há caminhos que não ousam olhar para trás, há quem desloca o sentido do tempo e olha para o passado para ressignificar o presente e fabular o futuro. Há o tempo de sankofa e nele tempo-espaço se cruzam, permitindo um refazimento das histórias, do tempo e do mundo.
Se há um movimento de pontuar e consagrar nomes em detrimento de outros na história do cinema brasileiro, o pensamento negro nas escrituras de um cinema negro faz questão de lembrar e relembrar os processos que permitem com que continuemos a contruir memória e reconfigurar a linha temporal que escreve e apaga histórias. Além de partir de si para contar sobre o mundo, há um desejo de contar sobre o mundo a partir desses corpos-territórios que por si só são constituídos de memória – pés, mãos, bocas, ouvidos. O corpo todo. Certa vez, li sobre uma diretora que, ao sofrer pelo falecimento de seu pai, sentiu necessidade de explorar as culturas afrobrasileiras e africanas durante a faculdade e assim começou a se aproximar do grupo Cachuera!, que tinha como rotina se reunir ao redor da fogueira e experienciar vivências da tradição negra popular do sudeste brasileiro como a congada, o jongo, a umbigada, o batuque, entre outras. Curiosamente, todas em referência ao corpo. O corpo como espaço de memória e de sagrado. Segundo ela, “com isso alimentei minha alma e tive fôlego para continuar na Universidade, a despeito de todo o eurocentrismo existente ali. Ainda não tinha um projeto definido, só sabia que queria povoar as telas do cinema e da TV com rostos negros. Muitos”.
Estamos falando de Lilian Solá Santiago, cineasta documentarista brasileira, professora e pesquisadora que, ao aproximar seu desejo de memória presente, deslocou e aproximou seu corpo-território a outros saberes que permitiram que o fazer-cinema se tornasse um fazer-memória. Entrelaçando memória, identidade, cultura afro-brasileira e questões de gênero, é parte integral de uma historiografia do cinema negro brasileiro. Nesta IV edição do Griot, é a diretora que compõe a mostra PANORAMA com quatro filmes, sendo eles seu primeiro longa-metragem, co-dirigido com Daniel Santiago, Família Alcântara (2005), e três curtas-metragens, Balé de pé no chão – a dança afro de Mercedes Baptista (co-dirigido por Marianna Monteiro, 2005), Eu tenho a palavra (2010) e Casa da Memória Negra de Salto (2016), que compõem esta mostra fazendo um panorama de sua filmografia e contribuição para preservar e manter a cultura e a memória da população negra brasileira viva e pulsante.
MESAS TEMÁTICAS
Tempo de Ajeum: um diálogo com a curadoria e direção do Festival Griot
O encontro potencializa as ideias e é através dele que muito se concretiza. A partir do conceito da quarta edição do Festival Griot, unem-se em uma conversa Direção Artística e Direção Executiva, conjuntamente com Coordenação e equipe de Curadoria, compartilhando os elementos que nortearam a seleção dos filmes e a construção da programação.
Participantes: Andrei Bueno Carvalho, Bea Gerolin, Kariny Martins, Gabriel Borges, Bruno Galindo.
Audiovisual Negro em Curitiba: Conexões e Perspectivas
A mesa reúne trabalhadores da indústria cinematográfica local para compartilhar suas visões e movimentos na tentativa de promover o aumento da representação negra nas produções audiovisuais, na frente e atrás das telas. Em um momento em que a presença de pessoas pretas tem sido tão discutida na cinematografia brasileira e mundial, quais são nossas estratégias para uma representação mais equânime e autêntica nas telas e na feitura dessas imagens?
Participantes: Tulio Borges, Kênia de Souza, Cássia Damasceno.
A narrativa circular no cinema afro-diaspórico, com Kofi Ofosu-Yeboah
A partir de reflexões sobre a maneira como a não-linearidade influencia construções estéticas e narrativas dos cinemas de diáspora, a masterclass traz Kofi Ofosu-Yeboah, diretor ganense do filme Public Toilet Africa, também na programação do festival, para debater códigos e escolhas que podem potencializar nossas construções visuais, utilizando nossas heranças culturais na construção de outros imaginários sobre nossa presença no mundo e no cinema.
O Griot – IV Festival De Cinema Negro Contemporâneo é uma realização da Cartografia Filmes, com incentivo do Ebanx. Apoio: Projeto Paradiso, Candaces Produção Cultural, O2 Pós, Aliança Francesa de Curitiba, Fecomércio PR – Sesc Paço da Liberdade, Cine Passeio – ICAC, Cinemateca de Curitiba, Embaúba Filmes, Filmes de Plástico e Todes Play. Projeto realizado com recursos do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura – Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.
Serviço:
Realização: Cartografia Filmes.
Griot – IV Festival de Cinema Negro Contemporâneo.
De 12 a 18 de outubro.
No Cine passeio, Cinemateca, Paço da Liberdade e com sessões online na Todes Play
Evento Gratuito.
http://www.festivalgriot.com.br