Colunista
Corpo em encontro, riscos do processo: Outra
por Noah Mancini
No dia 10 de Novembro, fui assistir à estreia do espetáculo cênico Outra, duo de Ciça Liberdade e Letícia Nabuco, no Teatro Paschoal Carlos Magno, em Juiz de Fora. A peça, em curta temporada, fica em cartaz até o dia 14 de Novembro.
Desde o primeiro instante, a proposta já entrega-se com pouca estrutura clássica de início e fim. As performers se movem de olhos fechados pelo espaço quando entramos. Nos posicionamos no palco para assisti-las. Algumas poucas cadeiras estão dispostas aleatoriamente. Ao fundo disso, um ruído branco com alguns chiados se estabelece por minutos a fio, até elas se encontrarem ou se aproximarem ou não. A cada chiado, as rotas se transformam. Uma luz baixa alaranjada ilumina o cenário, nos aproximando sutilmente da não visualidade que ambas vivenciam em cena.
Nesse início, tudo é aproximação e tentativa. O tato é ponto de encontro, se olham, percebem-se, se estranham, notam uma à outra: o outro corpo no espaço. É você, sou eu, é ela.
TUM! A música começa, a luminosidade se amplia, e elas pouco a pouco se despem. Os sapatos, a blusa, as peças vão sendo retiradas, frente uma à outra. Em silêncio, emulam a pose do homem vitruviano, braços abaixo, braços acima – enquanto isso, um áudio da voz masculina descreve o contexto do trabalho davinciano. O contraste entre o corpo real e a projeção social cria uma tensão: quem define o ideal?
A partir de um ponto, um ponto pequeno, algo como uma brincadeira com as mãos, na interação mútua, começam a continuamente progredir para um estado lúdico. De bobeirinhas infantis, de miudinho em miudezas, vão parar numa performatividade copiosamente feliz, delirante. Riem, giram, gargalham, se jogam ao redor do público.
Pausa. Ciça para, vai até o microfone, a música para. Ela pega o microfone e diz séria: “Não foi bem assim”. Elas voltam ao estado original, de roupa e tudo. E partimos de uma cena onde Letícia propõe à Ciça fazer um exercício de olhos fechados. Agora temos uma relação pontuada: estão estabelecidos os papeis das personagens, atriz (Ciça) e diretora (Letícia). A situação anterior pode ser derivada dessa circunstância primeira.
A atriz demonstra inseguranças em realizar o exercício diante de experiências passadas ruins, a diretora insiste. Mesmo contrariada, ela executa o exercício. Anda para lá, anda para cá, enquanto a diretora a acompanha pelo espaço. Minutos depois está a desencadear lágrimas pelo rosto, impactada com a situação. Há, nas entrelinhas, um estabelecimento de hierarquia, a partir de certo dado da persuasão frente à sensibilidade do outro.
E então Ciça volta, olha para os presentes, e profere frases que os outros a disseram, em contextos onde a vulnerabilidade se encontrava no simultâneo afetamento entre gênero e racialidade. Precisamente desconfortável, o que antes era um jogo teatral, numa dinâmica aparentemente simples, denuncia-se testemunho da atriz e personagem.
Há uma explanação do processo, numa desconstrução da própria cena, que contém uma ironia e garante um ar fresco, contemporâneo ao trabalho. Acredito ser na despretensão do gesto que reside a potência do espetáculo. Quando as personagens constroem a dramaturgia quase na exposição do ensaio, colocando em cena o que seria esboço. Essa escolha pela transparência proporciona à obra uma verdade ordinária, porém contundente.
O fim, numa música romântica ao piano, enquanto suas bocas se encontram, marca o timing da peça. No experimento do encontro, gera (outra) suspensão lúdica, de maneira contida e direta, confirmando no gesto a intimidade construída diante de nós.

