Interaja conosco

Teatro

Azira’i”: corpo-língua-memória ancestral perante um mundo alienígena

Publicado

em

por Carlos Canarin (@carloscanarin)

Nota: 4,5

Pude assistir ainda no mês de março, em São Paulo, ao espetáculo “Azira’i”, que também esteve na programação da mostra oficial do Festival de Curitiba em abril. Tal peça teve bastante destaque na cena brasileira nos últimos meses, tanto pelo notável reconhecimento do público para com o trabalho, quanto pela indicação de Zahy Tantehar ao Prêmio Shell de melhor atriz. Tantehar venceu o Prêmio, se tornando a primeira atriz indígena a realizar tal feito após 34 edições do mesmo.

Mas devo avisar que não irei analisar aqui a relevância do espetáculo a partir desse aspecto, afinal ele é muito mais do que isso. Ressalto de antemão que Zahy é de fato uma excelente intérprete, e nos presenteia com a força estrondosa de sua total entrega à cena. E penso que “Azira’i” é daquelas peças que já se tornaram um acontecimento dentro da história do teatro brasileiro, me assim posso me arriscar a falar. É tanto uma celebração das ancestralidades e das populações indígenas donas dessa terra Brasil, quanto uma denúncia do apagamento que insiste em acontecer, de línguas, territórios, culturas, crenças, corpos, e toda a contribuição dos povos originários para a construção deste país, afinal.

Em termos de estrutura do monólogo, aproximo-o bastante da tradição de contação de histórias que em certa medida se faz presente tanto nas culturas afro-brasileiras quanto indígenas. Esse ato de narrar transita entre diferentes tempos e estados de presença da atriz, que modula entre estar ela mesma enquanto performer num diálogo bastante direto com o público, e em emprestar seu corpo-voz para as personagens que compõem seu universo dramatúrgico, afim de representar as cenas as quais ela narra. Inserções de momentos cantados/musicados são feitos e nos levam para uma outra ideia de musical, menos no nível hollywoodiano, mais no nível dessa terra e suas potencialidades, brasileiro mesmo, ancestral, indígena.

O contato com o público é imprescindível para vários momentos da obra, pois enfatizam a reflexão sobre o apagamento das heranças indígenas no sentido da linguagem, mas também do desconhecimento da população em geral quanto às línguas originárias. A dramaturgia também incorpora momentos em que Zahy fala em sua língua materna, o que causa um estranhamento necessário, pedagógico e revelador das contradições que atravessam nossas existências: ao mesmo tempo em que não sabemos falar ou traduzir essas línguas indígenas, brasileiras afinal, possuímos fluência nos idiomas do colonizador, línguas alienígenas tais como inglês, espanhol, português…

Episódios da luta pelos direitos da população indígena no Brasil são evocados e referenciados em cena através de composições imagéticas, tais como a sequência que abre a peça, com Zahy caminhando com um facão até o meio do palco. Ao assistir, lembrei-me da fotografia feita em 1989 por Roberto Janes Martins de Tuíra, mulher indígena Kayapó, que encosta um facão no rosto do então presidente da Eletronorte, José Muniz Lopes, como forma de protesto à criação da hidrelétrica de Belo Monte. Ao recuperar essa iconografia, que de alguma maneira se faz presente no imaginário da população em geral, outras problemáticas insurgem, tais como o genocídio perpetrado contra a população Yanomami, legitimado e incentivado pelo governo Bolsonaro durante seu mandato, ao apoiar com veemência o garimpo ilegal em terras indígenas e desmontar órgãos de repressão e proteção ao meio ambiente e aos povos originários.

“Azira’i” é um espetáculo que navega pelas águas da memória de uma mãe e de uma filha para desaguar num oceano que revela esquecimento, silêncio, “passagens de boiadas”, histórias únicas. É um teatro indígena, e essa demarcação de lugar territorial no sentido físico e espacial e no sentido da linguagem do teatro é um ato político engajado, quando lembramos que o teatro foi usado como meio de dominação e apagamento pelo colonizador para com as populações originárias que aqui estavam, como meio de conversão, de catequização e transmissão dos valores “corretos”. É usar essa arte, que antes foi arma para dominar, como forma de ocupação e constatação de que esse é também um lugar de poder, que pode ser revolucionado, em primeira instância, a partir da mudança do corpo que desde sempre o dominou.

Comentar

Responder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Seja nosso parceiro2

Megaidea