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Opinião

Artéria Rara conclui trilogia do pertencimento da Cia da UFPR com potência ritual e crítica afiada

Artéria Rara reafirma a relevância da arte produzida dentro da universidade pública: diversa, pulsante, insurgente.

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Foto: Marcos Solivan

Por Vanessa Ricardo

Artéria Rara encerra a trilogia do pertencimento iniciada pela Cia da UFPR com Asa Serpente (2023) e Arrebentação(2024). O novo trabalho, dirigido e escrito por Rafael Lorran, reafirma o caminho da companhia no campo do teatro experimental, reunindo um grande elenco diverso e energético: Amanda Afonso, Camila Elen, David Jogia, Dekká Santos, Fabiene, Gabriela Boomer, Gustavo Wesley, Irá-Puã, Isabela Maria, Jessé Furquin, Korpa Enkantada, Levi Hilgemberge, Lua Blomster, Márcio Barbosa, Mikaela Sampaio, Murilo Marochi, Nathalia Walker, Noé Carvalho, Praia Satori, Rúbia Rodrigues, Valéria Batista e Vênus Cruvinel.

Se nos dois primeiros espetáculos a dramaturgia se apoiava em relatos pessoais dos integrantes, em Artéria Rara esse movimento se expande: o íntimo segue sendo matéria de cena, mas agora articulado a reflexões profundas sobre trabalho, exaustão e criação. O espetáculo traça um contraponto sensível entre “o começo de tudo”, quando havia silêncio, quando o tempo não se dividia e o presente, marcado pelo tempo do burnout, em que não paramos quase nunca, seja porque não podemos, seja porque fomos educados para não parar.

É justamente na pausa que Artéria Rara encontra sua pulsação. Entre os solos mais marcantes, destaca-se o de Gabriela Boomer, que revisita os 22 dias de apagão no Amapá durante a pandemia. Sua fala devolve ao palco uma memória coletiva que o país preferiu esquecer. Uma de suas frases mais contundentes ecoa na sala:
“Dentro de uma mesma terra invisível pra um país, há quem trabalhe pra encobrir, quem trabalhe pra fugir, e quem trabalha pra ser visto ali.”
É um depoimento que atravessa o público pela força da verdade e pela precisão do gesto.

Mas é na intervenção de Noé de Carvalho que o espetáculo alcança um de seus ápices políticos e poéticos. Sua fala irrompe como um manifesto contra o engajamento performático das redes e contra a estética vazia da aliança sem risco:

“Vai! Estampa no teu boné, na t-shirt porque soa bem, no outfit que te convém pra enunciar que é aliado sem jamais se deslocar. Vai! Curte, compartilha que é parente, mas não vai me acompanhar, nem vai me ver cantar, não quer mergulhar fundo. Diz que sente muito, fortemente, da poltrona de um Outback, inteiro de outlet, que é pra jamais se arriscar.
Vai! que eu tô assim, braços pra cima, estaca no peito, mais uma vez, mas tô assim, rindo, só pra trapacear a língua, o algoritmo, a tua rima, porque braços pra cima antes é mastro erguido, é sinal de chão que vinga, antes é um porto pra quem decido amar.”

Noé transforma o corpo em denúncia e resistência. Ele desmonta o ativismo domesticado, expõe o abismo entre declarar apoio e praticá-lo, e devolve ao palco um gesto de afirmação: braços erguidos não como rendição, mas como mastro, território e afeto. É um momento em que a cena vibra em sua máxima intensidade, porque fere e cura ao mesmo tempo.

No solo final de Valéria Batista, o espetáculo chega ao coração de sua proposta: ela convoca a plateia a perceber que existe, dentro de cada um, uma artéria cuja única função é religar a vida ao seu próprio ritmo. Enquanto ela germina, sem culpa alguma, sentimos no palco a promessa de vida acontecendo um chamado para desacelerar, respirar e existir.

Outro ponto de destaque é o trabalho de Priscilla Pontes, responsável pela preparação corporal, que dá coesão, força e pulsação ao grupo. O espetáculo respira através dos corpos, que se tornam veias expostas, rios que correm em direções diferentes, mas convergem para o mesmo coração.

Artéria Rara reafirma a relevância da arte produzida dentro da universidade pública: diversa, pulsante, insurgente. Mais do que um espetáculo, é um ritual. Um teatro para ver e rever, porque suas camadas não se esgotam na primeira experiência. É, antes de tudo, um espetáculo para sentir.

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