Teatro
ANTES TARDE DO QUE NUNCA: TODAS AS COISAS MARAVILHOSAS DE 2024 NO TEATRO
Pelas minhas contas, pude assistir em torno de 70 espetáculos, parte em Curitiba e parte em São Paulo, e esta é uma tentativa de uma possível “curadoria” daquilo que até agora não saiu da minha cabeça, em termos estéticos, narrativos, uma junção dos dois ou por propostas instigantes de experimentação cênica.

por Carlos Canarin
Dizem que com o fim do carnaval o ano “começa” de fato né? Logo mais o Festival de Curitiba retorna para mais uma edição e nem falamos sobre o ano passado… Pois bem, nesta publicação tentei fazer o compilado comentado das obras que para mim se destacaram ano passado. Pelas minhas contas, pude assistir em torno de 70 espetáculos, parte em Curitiba e parte em São Paulo, e esta é uma tentativa de uma possível “curadoria” daquilo que até agora não saiu da minha cabeça, em termos estéticos, narrativos, uma junção dos dois ou por propostas instigantes de experimentação cênica. Ah: resolvi não fazer uma escala de 1 a 10, mas jogar numa ordem aleatória sem um juízo de valor crescente. De presente de ano novo, deixo também um “bônus”.
Bom, vamos lá:
– “Alumia!”, da Alameda Teatral (PR)

Começarei por obras que em algum momento do ano passado já passaram pelas críticas que escrevi aqui para o jornal. Impossível esquecer de “Alumia!”, espetáculo voltado às crianças que nos acessa em lugares já bem elaborados no imaginário da literatura infanto-juvenil, mas que avança sobretudo no jogo de cena assinado por Cristóvão de Oliveira, nas “surpresas” da cenografia como um todo e também em interpretações divertidas e no tom certo. Diverte e prende até o fim, um grande acerto da companhia curitibana Alameda Teatral. Para quem não conferiu, “Alumia!” estará na programação do FRINGE nos dias 29 e 30/3 às 16h no Teatro Enio Carvalho, ótima pedida de programa para a garotada.
– “Todas as coisas maravilhosas”, solo de Kiko Mascarenhas (RJ)

Esse foi um dos melhores espetáculos que assisti no Festival de Curitiba ano passado. Kiko Mascarenhas está incrível num solo construído no aqui-e-agora junto com a plateia, trazendo a voz de um protagonista que tenta relembrar sua mãe, que sofre de depressão, de como a vida pode ser bonita, principalmente quando notamos aquilo que costuma ser corriqueiro e banal. Nos acessa em diferentes níveis, horas estamos rindo, outras segurando as lágrimas, e outras apreensivos do que pode rolar nessa coisa doida que é o teatro.
– “Outono”, da Cia Mineira de Teatro (MG)

É dança ou é teatro? A Cia Mineira trouxe seu “Outono” para uma cidade onde os dias cinzas são recorrentes. Em cena estão uma atriz, Priscila Natany, e um ator, Júnio de Carvalho, que nos conduzem por uma obra sem palavras, pautada naquilo tudo que pode ser apreendido e traduzido somente a partir da construção de imagens que resultam no encontro daqueles corpos dentro daquele cenário. O trabalho de corpo dos dois é de cair o queixo e as soluções encontradas para elaborar e refinar as situações são super criativas e nos fazem, de fato, viajar nessa estação de altos e baixos.
– “Para meu amigo branco”, dirigida por Rodrigo França (RJ)

Num colégio de classe alta, uma menina negra sofre insultos racistas por seus colegas brancos. Na tentativa de resolver tal situação, o pai da menina, interpretado por Reinaldo Junior (Rei Black), aproveita a ocasião de uma reunião de pais para expor a todos os presentes o que aconteceu com sua filha. O que se desenrola a partir daí é a exposição do racismo em seus vários níveis, falas, olhares e enraizamentos. É uma peça que coloca quem assiste como se fosse uma ou um daqueles pais daquela escola, que teria que algum momento se posicionar sobre o assunto. Uma aula sobre o racismo estrutural, ao passo de que também é uma convocação para a luta antirracista direcionadas às pessoas brancas.
– “Azira’i”, solo de Zahy Tantehar (RJ/MA)

Musical de memórias da incrível atriz Zahy Tantehar, que traz à cena sua mãe e sua ancestralidade a partir do recurso mnemônico e da colocação de sua língua materna dentro da dramaturgia do espetáculo. Quando pude assistir, ainda em São Paulo, haviam muitas pessoas indígenas na plateia, o que levou a protagonista a emocionar-se no final, pois ainda é uma luta constante a presença de pessoas indígenas tanto no palco, quanto na plateia. Lembremo-nos que o teatro, em sua fundação importada no Brasil, foi um instrumento de dominação e de colonização, e que historicamente excluiu esses corpos da possibilidade de manifestar sua cultura e ocupar esses espaços de formação subjetiva. Além de tudo isso, é de uma beleza sem precisar de muito em cena. É o encontro de Zahy conosco que importa. Volto a destacar também a precisão e o diálogo incrível entre a iluminação e a atriz, numa orquestração interessantíssima.
– “Améfrica: em três atos”, do Coletivo Legítima Defesa (SP)

Última peça da lista que já falei anteriormente, “Améfrica” traduz em cena muitas discussões que nós, teóricas(os) negras(os) e também indígenas, temos nos debruçado historicamente. O grupo, orquestrado por Eugenio Lima, não faz questão de criar artifícios ou ilusões cênicas – tudo o que está sendo falado e visto diante de nós é realidade, é urgente, é preciso ser falado antes que um futuro devastador aconteça. É um território invadido, uma encruzilhada de tensões que são postos em cheque. E a presença de Antônio Pitanga em um avassalador solilóquio de Calaban é um presente. Que venha logo para Curitiba!
– “Algum Lugar”, do Grupo Obragem de Teatro (PR)

Espetáculo voltado às crianças, mas que reflete sobre temas dilacerantes como a experiência da guerra e a migração forçada de um território invadido e em conflito. “Algum lugar”, novo espetáculo do já tradicional Grupo Obragem, traz para cena uma sensível alegoria de como corações e homens podem endurecer como pedra, e coloca no centro a busca pela sobrevivência em situações extremas. Destaco, para além da minuciosa direção de Olga Nenevê, o cenário assinado por ela e por Eduardo Giacomini, que nos faz lembrar de Auschwitz, ou da Palestina, ou de episódios recorrentes na própria história do Brasil; além disso, chamo atenção para o exímio trabalho de corpo de Ane Adade como o beija-flor, e o canto que substitui o grito e o silêncio feito por Taciane Vieira.
– “O medo da morte das coisas”, da Súbita Companhia (PR)

Não estamos acostumados a ver Maira Lour pessoa física em cena, afinal ela trilha um bonito lugar com a Súbita Companhia na área da direção. Mas é impossível não deixar de falar de seu solo, dirigido por Nadja Naira. “O medo da morte das coisas” parte de uma relação aparentemente familiar e voltado às memórias, para falar de uma casa, uma edificação, que sobrevive ao passar do tempo. Que na verdade é sobre ela mesma e tudo aquilo que resta, persiste, daquilo que passa. É a mistura arquitetônica de uma casa que também é extensão de seu próprio corpo, com suas fundações e pinturas bonitas, mas que também apresenta seus mofos e infiltrações. Importante destacar a busca incessante do grupo e a valorização das dramaturgias autorais, que inclusive são publicadas, uma ação de fomento à escrita para a cena.
– “Atravessar o mar para sempre”, do Teatro de Bagagem (PR)

Agora que me dei conta que essa lista “nova” está cheia de peças paranaenses, e talvez esse movimento seja importante também para valorizarmos o que é feito aqui, não como bairrismo, mas como potencialização daquilo que está sendo avançado neste território. Seguimos a outro espetáculo voltado às crianças, e que também traz a guerra como ponto de partida. Como que a gente chora tanto desse jeito em algo constantemente menosprezado e dito como menor? O Teatro de Bagagem apresenta um retrato da barbárie sem expor tudo como realmente é, mas nos deixando completar as imagens, as falas e os códigos deixados. O trabalho com as formas animadas é brilhantemente dirigida por Dico Ferreira, que deixa a cargo de Naiara Parolin e Thiago Dominoni a responsabilidade para nos levar a um lugar onde a morte está à espreita a todo instante. Quem disse que todo teatro para criança tem que ter um final feliz e alegre? A vida quase sempre não é assim, e este é um tapa na cara que levamos em quase todas as cenas durante essa peça-travessia.
-Arrebentação”, da Companhia de Teatro da UFPR (PR)

Continuando a pesquisa de linguagem proposta desde o primeiro espetáculo enquanto diretor e dramaturgo da Companhia de Teatro da Universidade Federal do Paraná, Rafael Lorran desenha com seu elenco uma “Arrebentação” onde nada permanece em pé. A ideia de família é investigada do início ao fim, muito menos por formas óbvias de por isso em cena e mais pelas simultaneidades que a contemporaneidade nos propõe. E ah, como é lindo ver o desafio de estabelecer diálogo com um elenco tão grande e tão misturado, desde atrizes e atores com experiência e também com pessoas que não o eram antes da experiência com a Cia. Destaco aqui a maravilhosa cena onde o teatro vira uma ballroom, coisa que levou o público presente à loucura. A preparação corporal de Pri Pontes também é coisa a se notar, afinal o que vemos são atuantes-perfomers preparados para tudo naquele infinito jogo de cena. Ah: “Arrebentação” volta com duas sessões no FRINGE, dias 01 e 02/04 às 20h no Sesc da Esquina. Imperdível.
– BÔNUS: “Elis, A Musical”, dirigido por Dennis Carvalho (RJ)

Impossível não deixar de falar também de “Elis, a Musical”, que passou em janeiro por Curitiba e me deixou desolado quando do seu final. O texto de Nelson Motta e Patrícia Andrade nos reconta a história dessa fabulosa personagem da música popular brasileira, desde sua primeira apresentação numa rádio em Porto Alegre até sua última entrevista. E Laila Garin brilha mais uma vez como a protagonista, coisa que né, já estamos acostumados a esperar dela, e mesmo assim continuamos sendo tocados como se fosse a primeira vez. Destaco a direção de Dennis Carvalho juntamente com a direção de movimento e de coreografia por Alonso Barros, que nos trazem um musical esteticamente brasileiro, falando daqui e trazendo elementos daqui para a cena, sem ser uma tentativa de parecer uma cópia norte-americana. Por fim, eu disse que sai desolado pois as músicas apresentadas fazem parte do meu, do nosso imaginário em alguma medida, e acabam por ativar memórias. E como é lindo quando o teatro nos invade desse jeito.