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Teatro

“O Fantasma de Friedrich”: um musical de outra dimensão

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Por Carlos Canarin

Com a licença do trocadilho do título dessa crítica, tecerei algumas palavras sobre a nova produção da companhia curitibana Bife Seco, o espetáculo “O Fantasma de Friedrich – uma pop ópera punk”. O musical fez uma curta temporada de estreia no último fim de semana no Teatro Guairinha e teve sessões esgotadas.

Dirigida e escrita por Dimis, a peça possui como mote a história de Alana, uma adolescente que (aparentemente) se interna por livre e espontânea vontade numa clínica psiquiátrica para descobrir o que aconteceu com sua irmã gêmea, Lana, que possivelmente também esteve lá internada pela mãe das duas. Uma vez lá dentro, seu caminho se cruza com a dos outros pacientes, que também precisam lidar com seus próprios problemas e também com a rotina de “reabilitação” com a temida equipe de enfermagem do lugar, liderada por Lucy Fernanda. Como se isso não bastasse, Alana possui seu fiel escudeiro, o urso de pelúcia falante Adolfo, e uma aparição que ela não esperava: o fantasma de Nietzsche invocado por um livro antigo.

É preciso que eu mencione já o fato de que o elenco escolhido como um todo arrasa nas interpretações e mostram com vigor e intensidade suas habilidades técnicas vocais. Voltarei meus destaques então à Amanda Nicolau e à Helen Tormina, as atrizes que interpretam as enfermeiras da clínica de reabilitação psiquiátrica. As duas protagonizam junto com Filipe Dassie números muito divertidos ao apresentarem o cotidiano “hospitalar” e suas aparentes vilanias, mas que são totalmente cativantes e cheias de potência cênica e musical. Mo Amaral também se destaca ao interpretar Lídia, uma das pacientes do lugar. Ela sofre da síndrome de Tourette e tem  texto bastante cômico e cheio de nuances, conquistando o público de imediato em cena e chegando até a fazer uma rixa (bem quinta série) com a protagonista.

Não posso deixar de citar também os já bem conhecidos do público de Curitiba Sávio Malheiros (Adolfo) e Ranieri Gonzalez (Nietzsche), atores que brilham mais uma vez com personagens instigantes, carismáticos e bem construídos, nos brindando com interpretações de nível altíssimo. E ah, quem imaginaria assistir Nietzsche representado numa roupagem bem doida e fantasmagórica estilo Família Addams e ainda um urso de pelúcia “humanizado” que é manipulado ao vivo e que vai aumentando de tamanho conforme a peça vai passando? Inesperado e surpreendente são as palavras para mim.

E aproveitando a deixa dessa “doideira” que o espetáculo parece explorar (e inclusive se afundar nessa ideia em algumas cenas), gosto bastante de como Dimis propõe uma encenação que brinca com algo aparentemente bobo e faz isso se tornar um jogo de cena, entre o elenco e a plateia que é muito gostoso de assistir. Como mencionei em outras críticas, é um prazer ter uma experiência onde você vê as e os intérpretes se divertindo em cena, e é bem isso o que acontece em “O Fantasma”. O texto já nos fornece isso, e a encenação faz os elementos cênicos conversarem muito bem. E é uma dança de referências a todo instante, dialogando e incorporando elementos da atualidade e da linguagem teen como os memes e o cotidiano na web. Ao meu ver isso faz com que a obra possa atingir outros públicos que não consomem necessariamente o teatro, e isso se estende quando pensamos na área do teatro musical.

Digo sem melindres: a dramaturgia tecida por Dimis é uma delícia de ser acompanhada. Ela possui um tom mais cômico mas apresenta também um nível de dramaticidade que é requisito para acompanharmos a história da protagonista até que ela descubra todo o mistério que tenta desvendar. Apesar disso, o texto não se limita a apresentar e a desenvolver outras figuras instigantes somente no nível do protagonismo ou antagonismo, estendendo isso a praticamente todos os que estão em cena. E isso é ótimo para quem assiste, pois a cada cena estamos acompanhando motivações e backgrounds diferentes que em algum ponto se cruzam.

As 2 horas e 30 minutos do espetáculo passam sem nenhum incômodo pela duração, e acredito que isso está diretamente ligado ao ritmo elaborado pela encenação que tece os números musicais e o desenvolvimento narrativo de forma bem casada e com bons tempos de respiro. Falando sobre os números musicais, considero que as composições de Enzo Veiga junto com Dimis são muito envolventes e exploram muito bem as capacidades vocais dos atores e atrizes como um todo, apresentando andamentos que muitas vezes levam à catarse do público, como as relacionadas à protagonista Alana (interpretada por Laura Binder) e seu interesse amoroso, Abel (interpretado por Henrique Augusto). Estendo também esse elogio à banda que toca as músicas ao vivo, com notável qualidade técnica. Além disso, não posso deixar de citar a icônica cena (e para mim uma das melhores do espetáculo) da cúpula dos filósofos, cheia de referências críticas aliadas à sutileza existente na comicidade inteligente que se manifesta pelas letras das canções.

“O Fantasma de Friedrich” navega por temáticas bastante atuais e que precisam ser mais debatidas tanto pela sociedade como um todo quanto pela própria arte, e acredito que elas são abordadas de forma menos didática e mais performática dentro da construção dramatúrgica. A ansiedade e outras doenças relacionadas à saúde mental permanecem cheias estigmas que enquadram e engessam as pessoas que convivem com elas, e isso parece ter se intensificado se pensarmos nas novas gerações onde as redes sociais acabam interferindo diretamente nas projeções do eu perante o mundo, seja pelo excesso de informação, seja pela necessidade imediata de aprovação.

Considero também que o espetáculo ajuda a expandir a cena do teatro musical na capital paranaense, trazendo uma montagem cheia de referências a outras peças icônicas dentro dessa linguagem e de uma qualidade técnica e poética altíssima. Lembro ainda um exemplo de que na cidade existe uma escola de formação na área, o Projeto Broadway, onde a pesquisa e a criação de obras de teatro musical tem sido feitas nos últimos anos. A companhia Bife Seco dá um passo a mais para que de fato se possa falar num teatro musical de Curitiba e fazer da cidade mais um local no Brasil de referência na área, fugindo um pouco do circuito Rio-São Paulo.

Como reforçado pelo diretor no final do espetáculo, o que se falava era que Curitiba não tinha público para espetáculos de teatro musical. Felizmente, a primeira temporada de “O Fantasma” nos mostrou o contrário.

“O Fantasma de Friedrich – uma pop ópera punk” é uma produção do Bife Seco. Tem direção geral & dramaturgia por Dimis. Direção Musical e Composições Originais: Enzo Veiga. Letras: Dimis & Enzo Veiga. Elenco: Ranieri Gonzalez, Sávio Malheiros, Laura Binder, Henrique Augusto, Mo Amaral, Laís Cristina, Emanuel Bill, Amanda Nicolau Schubert, Helen Tormina, Filipe Dassie. Direção de Movimento: Val Salles. Desenho & Programação de Luz: Lucas Amado. Desenho & Operação de Luz: Anry Aider. Sonorização: Chico Santarosa. Microfonista: Helena Sofia. Cenografia: Dimis & Leo Gegembauer. Cenotecnia: Fabiano Hoffmann. Figurino & Maquiagem: Leo Gegembauer. Costureira: Sandra Canônico. Boneco Adolfo: Ateliê Miniart. Fantoches: Tadica Veiga. Identidade Visual: Amorim. Fotos: Gutyerrez. Assistência de Produção: Mariana S Pinheiro, Vini Heimann. Produção Executiva: Jac Alber. Direção de Produção: Sávio Malheiros.

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