Opinião
Espetáculo combina show, memória e teatro para narrar a trajetória de uma mulher à frente de seu tempo.
Em cena, a obra reafirma a potência de Rita Lee como artista que enfrentou o machismo, rompeu padrões e abriu caminhos para outras mulheres na música.
Foto: João Caldas
por Vanessa Ricardo
São nove atores em cena conduzindo a trajetória de uma das maiores cantoras do Brasil. O espetáculo começa com “Chega Mais”, de 1979, seguido por um pot-pourri que funciona como porta de entrada para a história que se desenrola: uma viagem afetiva e musical pela vida de Rita Lee.
Mel Lisboa assume novamente o desafio de interpretar a rainha do rock brasileiro tarefa que realizou pela primeira vez em Rita Lee Mora ao Lado (2014), montagem que lhe rendeu prêmios. Aqui, Lisboa retorna ao papel com maturidade, entrega cênica e domínio da personagem, recriando no palco a ironia, o humor e a força que sempre marcaram Rita. Não apenas reproduz trejeitos e modos de falar, mas captura o espírito irreverente e rebelde de Rita. Há algo de comovente em vê-la novamente nesse lugar; a atriz encontra um equilíbrio entre homenagem e presença cênica própria.
A dramaturgia, assinada por Guilherme Samora, parte de Rita Lee – Uma Autobiografia Musicada (2016), obra em que a própria Rita revisita sua trajetória com humor, franqueza e autopercepção. A direção é de Marcio Macena e Débora Dubois, com direção musical de Marco França e Márcio Guimarães, que estruturam o espetáculo como um híbrido entre narrativa biográfica e show de rock, mantendo a música como eixo condutor.
O espetáculo alcança alguns de seus momentos mais potentes quando se aproxima do formato de show com a entrada de Ney Matogrosso, interpretado com sutileza e precisão, criando uma cena lindíssima. Mas não para por aqui, Gal Costa em uma cena delicada e emocionante, interpretada por Yael Pecarovich e a aparição sempre marcante de Hebe Camargo, vivida por Debora Reis, que retoma o papel já defendido na biografia teatral da apresentadora, em 2017.
O cenário é simples, mas eficiente: dividido em dois planos, com a banda posicionada na parte superior, formada por Felipe Mota, Jackei Cunha, Marcio Guimarães, Ricardo Berti e Rovilson Pascoal, reforçando a dimensão musical da narrativa e criando uma ambientação que sustenta bem as passagens biográficas.
O espetáculo não ignora os atravessamentos sombrios da vida de Rita Lee. Relembra sua prisão enquanto estava grávida do primeiro filho, após a polícia plantar drogas em seu quarto, episódio que ocorreu depois de Rita prestar depoimento sobre o assassinato de um jovem por um policial dentro do local onde Os Mutantes se apresentavam, em Itaquera. A montagem destaca também a inesperada aproximação com Elis Regina durante esse período.
A censura imposta pela ditadura militar aparece como uma ferida aberta: Rita foi uma das compositoras mais censuradas do país, e o musical expõe essas tensões de forma direta, sem suavizar o embate entre criação e repressão. Outro ponto sensível é sua recaída no álcool e nas drogas, especialmente após a perda de familiares e amigos próximos, momentos tratados com delicadeza.
Apesar das dores, a narrativa enfatiza a relação de parceria e afeto entre Rita e Roberto de Carvalho, apresentada como um eixo de estabilidade e cumplicidade que atravessa toda a obra.
Com um elenco afiado e brilhante Mel Lisboa, Bruno Fraga, Fabiano Augusto, Carol Portes, Debora Reis, Flavia Strongolli, Yael Pecarovich, Antonio Vanfill, Gustavo Rezê e Roquildes Junior, o musical constrói uma homenagem vibrante à rainha do rock brasileiro. Em cena, a obra reafirma a potência de Rita Lee como artista que enfrentou o machismo, rompeu padrões e abriu caminhos para outras mulheres na música. Rita aparece como uma figura à frente de seu tempo, irreverente, criativa e politicamente incisiva.
É importante destacar que o espetáculo se insere no formato característico do musical brasileiro, algo que, pessoalmente, considero uma força. Trata-se de uma linguagem que se afasta do modelo “à la Broadway” e aposta em outra energia: mais direta, mais afetiva, mais conectada à nossa tradição narrativa e musical. Essa abordagem menos engessada, mais livre e permeada de brasilidade permite que a história de Rita Lee respire com autenticidade. E o elenco abraça esse estilo com precisão e generosidade, sustentando a cena como um organismo coletivo e pulsante.

