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Opinião

Grupo Magiluth apresenta dois estudos cênicos que tensionam criação, memória e território

A companhia pernambucana apresenta em Curitiba dois estudos que exploram, de formas distintas, a construção dramatúrgica e os atravessamentos sociais que moldam a cena.

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em

Foto: Renato Domingos

por Vanessa Ricardo

O Grupo Magiluth, companhia pernambucana reconhecida pela pesquisa em experimentação cênica, apresentou em novembro, na Caixa Cultural Curitiba, dois trabalhos que revisitam procedimentos, dramaturgias e camadas que atravessam o fazer teatral. Sob o formato de estudos, a companhia fricciona processos e narrativas para pensar o papel do ator, do personagem e das materialidades que compõem a cena.

Estudo nº 1: Morte Vida — o ato de criar diante da permanência do sofrimento

Partindo do clássico poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, o Estudo nº 1: Morte Vida desloca o texto para dentro da sala de ensaio. É ali, com luzes expostas  e corpos em construção, que o público acompanha os atores no enfrentamento da criação teatral.

O espetáculo traz à tona a permanência dos estereótipos sobre o homem nordestino. Aborda o impacto das mudanças climáticas provocadas pela ação humana, o ciclo de expulsões históricas e as condições de trabalhadores precarizados. “Mas isso diz pouco”.

De fato, diz pouco porque ainda existem milhares de Severinos, sujeitos atravessados pela seca, pela desigualdade social e pelos eventos climáticos extremos que continuam sendo desalojados de seus territórios. O estudo evidencia que a dramaturgia cabralina permanece urgente, mas não como um retrato do passado: ela ecoa um presente que insiste em se repetir.

Estudo nº 2: Miró — personagem, memória e ruína como dramaturgia

Se o primeiro estudo olha para o processo, o Estudo nº 2: Miró discute a criação a partir da perspectiva da personagem. O grupo investiga o que significa “construir” alguém ou algo em cena, questionando limites entre ficção, presença e memória. A dramaturgia coloca em debate a estrutura clássica da jornada do herói, seus antagonistas e coadjuvantes, propondo um deslocamento: e se a personagem for um território?

Aqui, entram em cena duas presenças centrais:
o poeta Miró da Muribeca (João Flávio Cordeiro da Silva), figura fundamental da poesia marginal de Pernambuco, e o próprio Conjunto Habitacional Muribeca, bairro da periferia do Recife, construído nos anos 1980 às portas do lixão. Foi ali que Miró viveu por décadas  até o conjunto ser demolido em 2019. 

A Muribeca, com seus 70 blocos erguidos ainda na década de 80, resistiu por anos como espaço de produção de vida, arte, conflito e comunidade. No estudo, o bairro também surge como personagem. Que por uma ação do antagonista vira ruína. Um bairro que foi construído para ser destruído. Ruína e poesia coexistem: uma estrutura física que desmorona e uma obra que permanece.

O que torna o Estudo nº 2: Miró especialmente instigante é o jogo proposto pelo grupo na construção da personagem. Em cena, há momentos em que o limite entre Miró e o ator Erivaldo Oliveira se torna indistinto: ora ele encarna o poeta, com sua força, sua cadência e sua memória; ora retorna a si mesmo, expondo o ator que tenta compreender e dar corpo a essa figura. Esse trânsito constante produz uma camada metateatral potente, pois revela a própria fricção entre biografia e invenção, entre a presença do artista homenageado e a do intérprete que a reinscreve. É desse embate que nasce a dramaturgia do estudo: uma personagem que é, ao mesmo tempo, pessoa, território e processo.

Dois estudos, um mesmo gesto: pensar a cena como território

Os trabalhos apresentados pelo Grupo Magiluth apontam para uma teatralidade que não se separa do mundo. Seja revisitando Severinos contemporâneos ou reconstruindo a memória de Miró e da Muribeca, o grupo reafirma o teatro como espaço de fricção entre política, poética e presença.

Em ambos os estudos, a pergunta é a mesma: como criar diante das urgências do agora?
A resposta, ainda que provisória, aparece na força do próprio gesto investigativo que faz do processo um método e da memória, matéria viva da cena.

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