Colunista
Bordas à deriva
por Noah Mancini
A convite de Aleph, no dia 02 de Novembro, fui assistir com Lynch, o espetáculo de dança Borda, apresentado no Sesc Pinheiros pela Companhia Lia Rodrigues. Assim que convidei Lynch para comigo ir, ela demonstrou forte entusiasmo, elogiando o trabalho da companhia que já havia assistido em outros lugares. Botei fé mas não imaginava o que me esperava. Melhor surpresa não haveria para aquele domingo.
O terceiro sinal, de praxe, toca. Nos ajeitamos nas cadeiras. Uma luz lentamente, bem lentamente, se acende. Um quase completo silêncio paira no ar, na expectativa do que se revela. A plateia do Teatro Paulo Autran, que não é pequeno, estava cheia. Em meio a tosses, rangidos de poltronas e suspiros, na espera do receptor, visionávamos aos poucos o que estava diante de nós. A expectativa já condiciona uma performance espectatorial atenta. Um ar cerimonial e misterioso tomava conta, trazendo as respirações para a atmosfera cênica.
A primeira imagem que se apresenta é uma espécie de escultura amorfa de retalhos, pedaços de algo que já foi outra coisa. Branca, opaca, transparente, pastel. Uma paisagem também, e escultura, pois imóvel estava, numa visualidade objetual. Aparentemente não há nada ali, mas com o tempo a coisa se move, igualmente lenta. Um corpo enigmático, num nascimento de matéria viva, vagarosamente se ergue, o que é isso? Ele está de frente, de costas?
As personagens absurdas e faceiras se revelam. Estão vestidas de pomposos trapos de roupa, enchidas por amarrações, sobreposições volumosas, próteses têxteis. A expressividade dos rostos e dos gestos em câmera lenta, em muxoxos, falando baixo, em movimentos duracionais, lentos e contínuos. Essas esculturas moventes são também um quadro, uma pintura, daquelas que acontecem várias cenas simultâneas. Personagens expressivos, falam baixo quase em sussurros, gesticulando em movimentos duracionais, lentos e contínuos. A inventividade nos trajes já começa a se revelar: longos cones que são peitos viram antenas, cabelugens são puxadas até o fim do traseiro de outro.
Em meio a um aglomerado de panos, uma grande lona plástica é cenário de fortes jornadas marítimas. O barulho das dobras, se condensando, esticando, batendo no chão do palco, cobrindo corpos, que soltam gritos que logo são abafados por uma onda que os atravessa. Maré alta, um bebê, um rio, as margens dele, pedregulhos, urros, um beijo apaixonado no meio de tudo!
Depois do naufrágio, algo acontece, algo muda. As rotas de sentido fazem voltas e apontam para outras direções. O espetáculo serpenteia outros disparates. A partir daí, meu pequeno bloco de notas desvaneceu-se. Não pude conter-me em descrever, precisava afundar junto, imergir.
Mais para metade é que a trilha se inicia, numa percussão insistente. Esse pulsar crescente, num baião, torna a trilha sonora referenciada em musicalidades brasileiras, numa citação a um Brasil profundo e à Mário de Andrade nas suas expedições de investigação sonora. Até essa característica musical, com poucas palavras e mais instrumentalizada, abre espaço para a subjetividade do receptor.
Determinado momento, panos de chão são pendurados, gradativamente, nos braços de um dançarino. Eles caem então no chão, onde são arremessados novamente, numa chuva cíclica, que joga, cai, e joga de novo. Em outra passagem, um vulcão (ou uma boca?) expele corpos rastejantes, saltitantes, como lava ou língua para fora. Outro dos enésimos pontos altos é a da bicha com sua armada saia de dona aranha, trajada num guarda-chuva teia, enrola os fios de cabelo de lã, faz caras e bocas: de repente performam passos de can can, com o corpo de baile em pernas sustentatórias por trás. Todos esses excertos cênicos podem ser preenchidos por gritos, cantos, gestos formosos e satíricos.
O figurino é primoroso e melhor não podia consonar. Caminha de um high fashion avant garde upcycling no pós mundo do realismo fantástico, em tons embranquecidos, de cores pasteis, para uma troca de vestes vibrantes, de cor e textura, uma vivacidade mambembe, continuamente reaproveitando-se, trocando-se, se alterando.
É pertinente dizer que o que apresento aqui, sem redundantes obviedades, é o que vi e as imagens que aqueles corpos criaram e minha imaginação suscitou. A potência do espetáculo está aí também, no que criamos com o que vemos, nos deixando a imaginar, na subjetividade dos gestos e das vocalidades.
Todas essas imagens que narrei podem ou não ser verossímeis, pois foram as capturas sensíveis que pulsaram de um momento para o outro. Certa hora achava que estava a viajar pelo brotar das rochas, protozoários que borbulharam do fundo dos corais oceânicos e subiram à superfície para fertilizar o solo. Já em outra, imaginava a história de uma monarquia que ousou dominar além-mares e naufragou na missão, se transformando no povo outro, que não eram. Entre variadas mais histórias dançantes e efêmeras.
Há uma ilegibilidade – qualidade comum na linguagem da dança – que permeia o todo, nas frases quase completas, no que aparenta ser algo, mas pode ser também outro algo. Envoltos em mistério, jogam para nós a sensibilidade da interpretação, a atenção. Como comentou Lynch, a coreografia é falsamente caótica, pois quando tudo parece um laboratório devir de gestos díspares e múltiplos, algo se sincroniza. Passos são dados juntos, no contato dos corpos.
Deu vontade de dançar e eu me mexia na cadeira do teatro. Me impressionou o público assistir ao espetáculo tão parado em seus assentos. Ao final, sucessivos aplausos de pé, os dançarinos iam e voltavam para agradecer as palmas. Saímos com o corpo ainda vibrando. “Borda” me pareceu um desses trabalhos que se tornam uma experiência sensorial e coletiva. Há ali uma pesquisa consistente sobre corpo, tempo e convivência, mas também um convite ao estranhamento, ao olhar mais demorado. Saí do teatro vendo mundos construídos e desfeitos diante de nós.

