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Opinião

Deserto: um mergulho poético na finitude e na criação

Deserto é daqueles espetáculos que permanecem depois do fim. Um solo que nos convida a olhar o abismo e, ao mesmo tempo, a beleza de continuar criando diante da morte. Um espetáculo que vale muito a pena ver e rever.

Publicado

em

por Vanessa Ricardo

O Teatro da Caixa Cultural, em Curitiba, segue sendo um dos espaços mais potentes da cidade quando o assunto é arte com profundidade e ingressos acessíveis. Entre o fim de outubro e o início de novembro, o local recebe o espetáculo Deserto, da companhia carioca Polifônica, capitaneada por Júlia Lund e Luiz Felipe Reis, este último também assina a dramaturgia e a direção da montagem.

Inspirado na vida e obra do escritor chileno Roberto Bolaño, o espetáculo marca o primeiro trabalho nacional baseado em sua literatura. A narrativa se debruça sobre os últimos anos do autor, que, aos 39 anos, ao descobrir um diagnóstico crônico de hepatite, decide abandonar os subempregos e dedicar-se inteiramente à escrita. É dessa entrega que nasce sua obra  e uma de suas frases mais emblemáticas parece ecoar  “Apenas no caos somos concebíveis.”

No palco, Renato Livera dá vida a Bolaño em um solo arrebatador. Mesmo quem não tem familiaridade com a obra do autor é tomado pela força da interpretação: um trabalho de corpo intenso, detalhado e visceral, que prende o público do início ao fim. A preparação corporal e direção de movimento de Lavínia Bizzotto potencializam esse atravessamento entre biografia e ficção, entre o homem e o mito, entre o exílio e o pertencimento latino-americano.

É como se Bolaño habitasse Livera, suas inquietações, paixões, medos e urgências. A finitude se torna motor de criação, e o palco, espaço de revelação.

O cenário, assinado por André Sanches e Débora Cancio,  é uma lona branca,  como uma página em branco que ganha vida com projeções e imagens que expandem o sentido da narrativa. Mais do que ambientar, o espaço cênico dialoga com a ideia de escrita e memória.

A dramaturgia construída a partir de cartas, textos, livros e conferências de Bolaño, resulta em um encontro potente entre teatro, literatura e cinema. Há um ritmo poético e uma estrutura fragmentada que refletem o pensamento do autor, transformando o palco em um deserto simbólico, cheio de eco. 

Deserto é daqueles espetáculos que permanecem depois do fim. Um solo que nos convida a olhar o abismo e, ao mesmo tempo, a beleza de continuar criando diante da morte. Um espetáculo que vale muito a pena ver e rever.

Foto: Renato Mangolin

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