Literatura
Ana Maria Gonçalves é a Primeira Mulher Negra Eleita para a ABL
Com 30 dos 31 votos, escritora de Um Defeito de Cor faz história ao ocupar a Cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras

Foto: Alexandre Cassiano
Em uma eleição histórica, a escritora Ana Maria Gonçalves se tornou, nesta quinta-feira (10), a primeira mulher negra a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL). Com 30 dos 31 votos possíveis, ela foi eleita para ocupar a Cadeira nº 33, anteriormente pertencente ao filólogo Evanildo Bechara, falecido em maio deste ano. A eleição quebra um silêncio de 128 anos de ausência de mulheres negras entre os chamados “imortais” da literatura brasileira.
Autora de um dos romances mais impactantes da literatura contemporânea, Ana Maria Gonçalves é mineira de Ibiá, tem 54 anos, e trilha uma trajetória marcada pela pesquisa rigorosa, protagonismo negro e ativismo literário. Sua obra mais conhecida, o monumental “Um Defeito de Cor” (2006), é considerada um divisor de águas na forma como o Brasil encara sua história a partir de uma perspectiva afro-brasileira.
Trajetória e Reconhecimento
Formada em Comunicação Social, Ana Maria trabalhou por 13 anos como publicitária antes de se dedicar à literatura. Em 2002, abandonou a publicidade e se mudou para a Bahia, onde iniciou sua jornada como escritora. Mais tarde, viveu nos Estados Unidos, atuando como autora residente em universidades como Tulane, Stanford e Middlebury College.
O reconhecimento veio em diversas frentes. Em 2007, venceu o Prêmio Casa de las Américas, um dos mais importantes da América Latina. Em 2013, foi condecorada com a Ordem de Rio Branco, e, nos últimos anos, teve sua obra adotada em universidades e debatida em salas de aula, movimentos sociais e palcos teatrais.
O Impacto de “Um Defeito de Cor”
Com quase mil páginas, o romance narra a vida de Kehinde, uma mulher africana escravizada que reconstrói sua história de dor e resistência até retornar à sua terra natal como mulher livre. A narrativa foi inspirada em Luísa Mahin, figura histórica ligada à Revolta dos Malês (1835), e exigiu cinco anos de trabalho da autora — dois de pesquisa, um de escrita e dois de reescrita.
“Um Defeito de Cor” já vendeu mais de 180 mil exemplares, foi tema de exposições, leitura obrigatória em vestibulares e, mais recentemente, inspirou o enredo da escola de samba Portela no Carnaval de 2024, levando o livro ao topo da lista dos mais vendidos da Amazon.
Representatividade e Diversidade na ABL
Fundada por Machado de Assis em 1897, a Academia Brasileira de Letras sempre foi marcada por uma representação elitista e predominantemente masculina. Em quase 13 décadas de existência, apenas três homens negros ocuparam cadeiras e a primeira mulher branca, Rachel de Queiroz, só entrou em 1977. A chegada de Ana Maria Gonçalves rompe esse padrão e amplia a diversidade de vozes dentro da ABL.
“É um dia histórico. Nós temos aprendido tanto com o feminismo negro, e a Ana é uma grande representante desse grupo de pensadoras”, disse a historiadora Lilia Schwarcz, também imortal da Academia.
“Ana Maria produz uma literatura de muito fôlego, muita potência. A casa se sente agradecida à vida por ter nos mandado a Ana”, declarou o músico e escritor Gilberto Gil, que também ocupa uma cadeira na instituição.
Para o presidente da ABL, Merval Pereira, a eleição é um marco necessário:
“Ana Maria é uma das maiores escritoras brasileiras dos últimos anos. A ABL está empenhada em aumentar sua representatividade”.
Legado e Futuro
A eleição de Ana Maria Gonçalves é mais do que uma conquista individual — é um gesto simbólico que reverbera nas margens da literatura brasileira. Sua presença na ABL representa uma abertura para a valorização de narrativas negras, femininas e periféricas, historicamente apagadas ou marginalizadas.
Sua obra literária e sua atuação como intelectual engajada seguem provocando reflexões sobre identidade, memória, ancestralidade e racismo estrutural. Ana escreve com a força de quem entende que contar histórias é também uma forma de reconstruir o mundo.
E agora, entre os imortais da Academia, ela reforça o que já havia escrito em suas páginas: a história do Brasil precisa ser contada por todos os seus filhos — inclusive por aqueles que por séculos foram silenciados.