Interaja conosco

Opinião

Teatro como espaço da inquietação

O espetáculo versa sobre dois grupos distintos que se valem do mesmo espaço cênico para ensaiarem suas peças musicais.

Publicado

em

Foto: Marcelle Cerutti

gabriel m. barros

 

​É longínquo o debate sobre a função da arte, ainda que não se tenha respostas concretas sobre. Me parece que esse é o ponto que nos vale aqui: a arte, aqui foco na teatral, não existe para nos dar respostas, mas sim para deslocar em nós certezas, lugares comuns. Existe, assim, para inquietar, e alargar nossa experiência estética, pessoal e social. 

​Partindo da inquietação que a peça suscitou em mim que escrevo sobre As armas milagrosas: seis personagens à procura de existência, dirigido por Anderson Negreiros e Daniela Manrique, que está em cartaz no Sesc Vila Mariana e fica até o dia 07/12. Com um grande elenco, formado por Barroso, Cainã Naira, Caio Silviano, Ciça Barros, Heitor Goldflus, Josy.Anne, Leandro Vieira, Rita Pisano, Sandra Corveloni e o próprio diretor, Anderson Negreiro, a peça se estrutura no encontro de duas dramaturgias “Seis personagens à procura de autor”, de Luigi Pirandello e “Os cães se calavam”, de Aimé Césaire. Confesso que conheço de menção ambos os textos, mas não tive oportunidade de lê-los, muito menos de vê-los encenados. Acredito que é um exercício interessante ver os pontos de encontro e tensão entre os dois textos, e no quanto a direção do espetáculo avançou ao fazer essa junção. 

​A peça tem grandes acertos nas construções e escolhas cenográficas que fazem (a cenografia é assinada pelo diretor e por Éder Lopes), que se complementa no desenho de luz, brilhantemente feito por Matheus Brant. A única escolha que a mim pareceu confusa e deslocada quando aparece em alguns momentos, mas que ao fim se explica, é quando a personagem interpretada por Ciça Barros se veste, em algumas cenas, com uma capa azul e uma máscara. A imagética nesse caso, deslocada ao fundo e sem um vínculo com o que acontecia em cena, acaba roubando a atenção, uma vez que se espera que essa nova persona fará algo em cena, o que não acaba acontecendo. 

​A parte musical é um grande trunfo do espetáculo. A trilha sonora organizada por Dani Nega e contando com músicos criadores, que compõem o elenco, sendo eles: Josy.Anne, Barroso, Caio Silviano e Gabriel Moreira(apenas este último não integrando o elenco), cria toda a atmosfera emotiva que se pede nas cenas, sobretudo nas partes cômicas e de tensionamento.

​O espetáculo versa sobre dois grupos distintos que se valem do mesmo espaço cênico para ensaiarem suas peças musicais. Um deles possui diretor e estão encenando Pirandello, formado por pessoas brancas. O outro se estrutura de forma autônoma tendo um texto que levam no próprio corpo, formado majoritariamente por negros, apenas uma branca, que também integra o outro grupo. A tensão se inicia quando uma das personagens do grupo autônomo, que trabalha como assistente no outro grupo, se questiona das razões de também não terem um diretor, de também não poderem cantar músicas em inglês e exige que se tenha um diretor. A partir daí a peça se desenrola e se estrutura nesse encontro entre os dois grupos e tensões que vão se formando. 

​A trama em si é riquíssima, mesmo que as personagens brancas sejam estereotipadas como seres fúteis, egocêntricas e deslocadas da realidade concreta. O que se destaca nessa construção é o corpo e as várias significações que se perpassam por ele (a esse tópico agradeço as trocas com Danilo). Se são seis personagens procurando à existência, é pelo corpo que esses personagens se dão e se fazem, até porque levam essa cenografia e narrativa na própria pele. 

​O que gerou inquietação e me pareceu a perda de oportunidade de melhor aproveitamento em cena, foi para com a personagem vivenciada por Ciça Barros. Ela transita entre os dois grupos, que realmente são dois mundos, e os dois a desconsideram, não a ouvem, e nem ela, a personagem, se impõe nos desdobramentos da peça. Ali me pareceu que havia um importante debate, inclusive para que a peça não caísse numa lógica de nós versus eles que ao fim fica parecendo. O desfecho da personagem acaba não condizendo com o seu desenvolvimento. 

Como o teatro não existe para dar respostas, nem seguir os caminhos que esperamos, esses deslocamentos podem ser ganhos para nossa própria apreensão estética, uma vez que em nós desloca algo. Nesse sentido, as armas milagrosas atende sua tarefa.

Seja nosso parceiro2

Megaidea