Interaja conosco

Colunista

Prata da Casa: equilibrismos entre a portaria e o carnaval

Publicado

em

por Noah Mancini

 

A convite de Gabriel, fui assistir na quarta-feira passada, a peça Prata da Casa, em curta temporada no CCSP. O espetáculo, um monólogo com Felipe Frazão, conta a história de Ataulfo (no popular, Tatá), um zelador de um prédio residencial. Herdou o emprego de seu pai, também zelador, no mesmo prédio. Ele sabe de tudo que acontece no edifício, conhece os condôminos, abre as portas, também as fecha, recebe encomendas e quebra todo o tipo de galho que aparece. Na introdução nota-se logo um personagem vinculado ao espaço de trabalho e à herança familiar.

Sua história enquanto funcionário é também sua história enquanto sujeito, misturando o trabalho e a subjetividade. O dia-a-dia enquanto funcionário, nessa complicada relação de pertencimento e hierarquia. Tal realidade, que a princípio seria um tanto rotineira, é irrompida pela chegada do reconhecimento facial na portaria do prédio. Embora o texto não seja excessivamente incisivo, ele sublinha as tensões sociais incutidas, explicitando questões sobre trabalho e subalternidade. Esse ponto marca certa virada, em que a narrativa passa a propor reflexões de caráter estrutural.

O samba percorre o trabalho, seja nos referenciais musicais, que preenchem o espaço nas caixas de som, ou na voz entoada do próprio ator – que rememora seu cancioneiro, na sonoridade da caixinha de fósforos, ou no rito festivo carnavalesco que preenche o corpo e celebra os êxtases do personagem. O recurso sonoro é estrutura, memória, ritmo, identidade. Essa honraria aos mestres da filosofia do samba e a seu pai, que era um deles. Impossível não lembrar de Ataulfo Alves, célebre sambista. 

A figura paterna aqui é tratada como sinônimo de acalento, recheada de boas lembranças, onde o ensinamento afetivo firma o esqueleto moral de Tatá. É algo que o estrutura, forma seu caráter e jeito de olhar o mundo, apresentando suspensões narrativas lúdicas que permitem o personagem passear pelo sonho em acalento pueril e a materialidade cotidiana do ofício de zelador. 

O trabalho corporal do ator é primoroso. Seus gestos melindrosos em braços e mãos, envergaduras que desenham silhuetas em ginga e altivez, passos de dança precisos. A interpretação acompanha tais traquejos: expressões dramáticas que variam de contexto, entre o leal e vigilante porteiro, pelo devaneio do apaixonado, até ao filho saudoso. Tal coreografia executada de maneira fina, confere um charme particular ao personagem, convidando-nos a apaixonar-se também, mostrando uma beleza da presença, uma formosura do viver. Fornece um ar carismático ao espetáculo, nos levando à afeição por Ataulfo. 

O cenário se resolve na simplicidade ilustrativa de uma portaria: simulação de ladrilhos hidráulicos, quina de parede de um antigo edifício, mesa de madeira com gaveta, rádio e caixinhas de fósforo. Um espaço no linóleo é o elevador. O subsolo do CCSP (Espaço Ademar Guerra) colabora sempre para gerar atmosferas cenográficas – a sobriedade visual reforça a proximidade com o cotidiano e garante funcionalidade ao jogo cênico.

O desenho de luz também é executado com maestria de transições fluidas, em cadências, acompanhando os humores dramatúrgicos. A luz branca, para a diegese crível do espaço cênico, já tons alaranjados e azulados para as efemérides subjetivas, reforçando as oscilações entre rotina e devaneio.

Como todo mundo precisa de amor, há também espaço para uma inserção romântica em quadro. Ataulfo é apaixonado por Maria, uma empregada doméstica – que ao que tudo indica, mora na casa do patrão. Eles conversam, trocam causos, e o protagonista sugere um flerte. Tatá a convida para um samba num bar mas ela não vai. Não vai e lhe escreve uma carta, onde diz que o romance entre uma doméstica e um zelador seria impossível. Pobre Maria, pobre Ataulfo. Até a paixão lhe é tirada. 

Enquanto assistia ao espetáculo percebi que estava diante de um trabalho daqueles bem amarrados. Um trabalho maduro também, mas atencioso em aparar as arestas para abrilhantar os pontos finos. Apesar da dor e da injustiça, das desigualdades da estrutura, era um deleite apreciar. 

O sujeito é bem humorado, uma graça do riso acompanha a peça, numa malemolência que mesmo os calos não abatem o prazer pela vida. Há brincadeiras em tom de fofoca sobre as particularidades da vida privada do Edifício Machado de Assis. Mas quando o personagem é um pobre fodido, e sua vontade de vida insurrece frente à mesma miserável e injusta vida que lhe rouba os direitos mais simples e singulares – como o dia do desfile carnavalesco onde Ataulfo é mestre-sala – a jornada do sujeito se torna ainda mais dolorosa. Mas, apesar de tudo, e por tudo isso, há graça, há paixão, sorriso e festa. Há dor, negações e indignidades, mas elas não podem ser o fim do fio, e nem o meio de contar a história, pois não são o que verdadeiramente vale no final das contas. 

 

_______________________________________________________________________

 

Ficha técnica

 

Direção e Dramaturgia: Victor Mendes

Idealização e Interpretação: Felipe Frazão

Direção Musical: Alfredo Del Penho

Direção de Movimento: Fabricio Licursi

Cenografia e Desenho de Luz: Marisa Bentivegna

Figurino: Miltinho e Ernesto Paixão

Direção de Produção: Flavia Primo e Rafael Lydio

Assistentes de produção: Jess Rezende e Lisi Andrade

Coordenação Geral: Frazão Produções Artísticas

Assessoria de Imprensa – Arteplural – M Fernanda Teixeira / Macida Joachim / Mauricio Barreira

Comentar

Responder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Seja nosso parceiro2

Megaidea