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Teatro

Os Severinos de Hoje: Magiluth Entre Poema, Oceano e Exílio

O espetáculo nos lembra que, enquanto houver retirantes, a arte precisa continuar falando e fazendo falar.

Publicado

em

por Vanessa Ricardo

O Grupo Magiluth, companhia recifense fundada em 2004 na UFPE e referência em pesquisa e experimentação cênica, segue expandindo seu repertório, já são onze espetáculos e, em 2025, circula com Estudo Nº 1: Morte e Vida e Estudo Nº 2: Miró. Em Curitiba, entre 13 e 16 de novembro, o grupo apresentou na Caixa Cultural o primeiro desses estudos, dirigido por Luiz Fernando Marques e Rodrigo Mercadante.

Partindo do poema clássico Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, o Magiluth retoma um dos textos mais contundentes da dramaturgia brasileira, obra que denunciou a miséria do sertão, mas também celebrou a cultura e a força do povo nordestino. Aqui, porém, o grupo escolhe não reencenar o poema, e sim colocá-lo em atrito com o presente, em uma estrutura que mistura palestra, ensaio aberto e performance.

O cenário, que remete a uma sala de ensaio, revela a espinha dorsal da criação: são os próprios atores, também diretores de seus processos que elaboram as cenas ao vivo, testam propostas, expõem dúvidas e tensionam leituras. Eles questionam frontalmente os estereótipos que ainda recaem sobre o “homem nordestino”: a imagem romantizada, o sofrimento folclorizado, a ideia de uma identidade fixa e única. Ao desmontar esses lugares comuns, mostram que o Severino de João Cabral nunca foi um personagem isolado, e sim um dispositivo político que segue atual.

Essa atualização se amplia quando o grupo conecta o retirante brasileiro aos deslocamentos contemporâneos. Em cena, Kiribati, ilha do Pacífico ameaçada pelo avanço do mar, surge como exemplo das populações que estão perdendo seus territórios por causa das mudanças climáticas. A dramaturgia costura esses mundos para afirmar: ainda há muitos Severinos, espalhados pelo planeta. Migrantes ambientais, migrantes econômicos, trabalhadores precarizados.

A reflexão sobre a uberização do trabalho aparece como uma das camadas mais fortes do espetáculo. O corpo exausto que cai sem vida no chão, enquanto a vida segue indiferente, sintetiza um sistema que normaliza a morte, literal e simbólica de quem trabalha até a exaustão.

Em meio a essa investigação, a linguagem poética irrompe. Em uma das imagens mais marcantes, o corpo de um ator, iluminado por um projetor em contraluz, transforma-se em mar. A imagem vira metáfora pura, um oceano feito de humanidade e deslocamento. Uma poesia que se escreve com luz e movimento.

Com Estudo Nº 1: Morte e Vida, o Magiluth reafirma sua potência: transformou uma obra fundamental da literatura brasileira em motor de pensamento cênico contemporâneo. Revisitar João Cabral em 2025 não é apenas gesto estético; é urgência. Porque os Severinos continuam caminhando, expulsos por secas, águas, desigualdades e engrenagens que moem vidas. O espetáculo nos lembra que, enquanto houver retirantes, a arte precisa continuar falando e fazendo falar.

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