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Teatro

KING KONG FRAN: PROVOCATIVA E REFLEXIVA

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Numa mistura de comédia e crítica social, King Kong Fran leva aos palcos reflexões sobre questões de gênero e poder

por Tacy

Um desbunde! É assim que eu definiria o espetáculo King Kong Fran, assistido no último domingo (07), em cartaz no Espaço Ecovilla Ri Happy (Teatro Tom Jobim), no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Altamente ácido, sarcástico e irreverente, o solo é idealizado e protagonizado pela atriz e palhaça Rafaela Azevedo, que arranca gargalhadas da plateia, principalmente a feminina, ao abordar com inteligência e fino deboche situações cotidianas de machismo e misoginia, num roteiro dramatúrgico ousado e referenciado no clássico circense “A Mulher Gorila”. Numa performance mais que genial, Rafaela descortina a hipocrisia do discurso masculino com perspicácia e comicidade. Para além de uma catarse pessoal, o espetáculo King Kong Fran é uma expiação coletiva de questionamentos e confrontos. E qualquer semelhança com aquele lugar tão conhecido por nós mulheres, dos traumas naturalizados na sociedade, não é mera coincidência.

Tudo começa com uma música de suspense. Fran sai de uma jaula, vestida de gorila. A trilha rapidamente se transforma no hit pop “Toxic” da Britney Spears, enquanto ela dança performaticamente com um dildo avantajado nas mãos. O figurino de gorila aberto ao meio, assinado por Natasha Falcão e adereços de Claudia Taylor; revela plumas, penas e uma cintaralha, onde o dildo está encaixado. Ao final do número de abertura, ela o desencaixa e
arremessa o obtuso objeto na direção da coxia. Só aí descobrimos que o dildo era, na verdade, o seu microfone, pois ela sinaliza que não pode ser ouvida pela plateia, recorrendo a um pedestal onde um microfone tradicional a aguarda. A partir daí, King Kong Fran mostra a que se pretende: incomodar e confrontar, (senão irritar), irreversivelmente, todos os presentes na sala.

A sinopse da peça é translúcida: fala sobre sexualidade e distinção de gênero na construção social. O que me faz pensar que a maioria dos homens alfabetizados com meia ervilha de cérebro leriam esta definição e entenderiam que se trata de uma peça, no mínimo, antimachista. Mas logo nos primeiros quinze minutos, fica muito claro que nenhum, repito, nenhum homem ali presente está, de fato, preparado para um confronto tão direto. Porque King
Kong Fran é um soco no estômago, na fragilíssima virilidade masculina. Ao inverter o fetiche masculino em gozo feminino, Fran está com o poder e controle em suas mãos, deixando-os  vulneráveis e nervosos, à beira da nudez (quase literalmente) e usando a lógica machista de forma inversa, a nosso favor. Por exemplo, para solicitar um espectador masculino junto ao palco, Fran primeiro se reporta à mulher que o acompanha, “Ele é seu?”, porque ali a posse sobre o outro, é delas. Ao referir-se aos seus corpos, ela emprega os familiares adjetivos objetificadores, julgando o tamanho da “mala” dos rapazes como meros pedaços de carne na categórica afirmação “se não está com a mala marcando, não sai de casa!”. Em outro momento, ela solicita que três deles fiquem de pé próximos ao palco, virados para a plateia e pede que se abracem pela cintura. Risos nervosos e faces ruborizadas timidamente tentam acatá-la, mas os movimentos nunca foram tão rijos, iguais aos de um robozinho. A seguir, ela pede calma e docemente que eles juntem seus rostos uns aos outros e rocem as barbas, sob a maldição de saírem dali tachados de machistas. Um dos sujeitos ficou tão vermelho de vergonha que achei que ia explodir a qualquer momento, enquanto um outro foi murchando visivelmente o sorriso e o terceiro já acenava com o dedo em riste veementemente uma negativa. Nem preciso dizer o deleite do público feminino diante de tamanho desconforto.

Sim, confesso, há um regozijo de superioridade feminina, um riso de escárnio e vingança diante da humilhação deles. Fran sabe disso, todas as mulheres ali sabem disso, porque durante os setenta e cinco minutos que nos mantém juntas, trocamos olhares de cumplicidade com a protagonista o tempo todo. Enquanto isso, conforme os rumos que Fran vai guiando o “padrão”, termo como ela se refere ao homem branco que topa subir ao palco
com ela; as confiantes e cínicas risadas graves, antes tão sonoras, vão perdendo o entusiasmo, dando lugar a um sutil silêncio desconfortável, quase culposo. Digo sutil pois ele é quebrado constantemente pelos uivos agudos e risadas histéricas da mulherada enquanto assistem o padrão responder todas as perguntas no microfone-dildo de Fran, fazer um strip-tease e dançar de cueca no palco. Sem impor nada, Fran sapateia na cabeça dos machistas.

Sempre gentil ao solicitar os rapazes antes de qualquer ação, Fran é feminilidade, não performa macheza ou agressividade, exceto por um rosnar característico cada vez que quer destacar um ponto discordante, como qualquer mulher pós-contemporânea poderia fazer. O respeito e educação de Rafaela falam mais alto no texto. Sua violência consiste apenas no ato de espelhar o horror do falo, vulgarizando o ridículo do narcisismo imagético dos bíceps e
tríceps desenvolvidos. Em dado momento do espetáculo, nós descobrimos a referência de Rafaela para escrever este monólogo: a experiência traumática de um abuso sexual. Ela fala abertamente em cena, quebrando a quarta parede. Por alguns minutos, não é mais a performance de Fran, é Rafaela nos contando seu relato, sua dor. E nessa hora, a ficha masculina finalmente cai: ela está denunciando-os. E é aí que King Kong Fran, enquanto dramaturgia, fica gigante.

Falando de semiótica, análise da representação dos signos e símbolos, ao inverter o ponto de vista do comportamento masculino, Fran devolve na mesma moeda, ainda que em dose homeopática, o que os homens fazem conosco há séculos, em doses cavalares. Ela não afaga egos, não ameniza piadas, não passa pano para patifarias. Ao contrário, King Kong Fran convida cada indivíduo do sexo masculino, forjado nesta estrutura machista e patriarcal, a
provar do seu próprio veneno. Ali no palco, Fran representa a vilã opressora e predadora, numa espécie de espelhamento psicanalítico do homem branco cruel. Ao desconstruir os estereótipos femininos como Fran, Rafaela transforma o constrangimento feminino numa experiência de terror aos homens. Ao invisibilizar, humilhar, assediar e silenciar um exemplar deles no palco, Fran fortalece o discurso feminista da peça, pois faz com que ele penetre em camadas mais profundas da percepção humana. E no fim, é essa lente de aumento invertida que faz o público
masculino se retorcer na cadeira, mesmo que apenas por uma hora e quinze minutos. Sim, eles ficam constrangidos, terrivelmente. Por todas as fileiras, estão perturbados com as falas, com as cenas e as provocações de Fran. Vi até mulheres constrangidas por eles estarem sem graça, naquela velha submissão feminina. “Você está bem? A hora que quiser ir embora…”, ouvi uma delas dizer ao acompanhante do lado, numa compaixão deslocada. Murmúrios risonhos de “coitado!” na plateia e os aplausos finais ao fim do espetáculo, dizem muito sobre o ovacionamento feminino ao macho torturado pela “fera” Fran.

Num convite aberto à desconstrução de padrões e preconceitos, usando o humor como “um lubrificante de verdades duras”, como disse a publicitária Marcela Ceribelli, fã do espetáculo; King Kong Fran é um espetáculo vivo e flexível. E por conta da nossa cultura de silenciamento diante das violências, é não só educativo, como obrigatório. Os mais
conservadores podem pensar “nossa, essa Fran exagerou também, não?” E eu vos digo: nem um pouco! Porque mesmo sentindo todo o constrangimento do mundo por verem na Fran o espelho de si mesmos em ação, nenhum homem sairá do teatro com medo dela por muito tempo. Porque a Fran é uma ficção, eles sabem disso. Porque tudo que foi vivido ali é apenas teatro. Para homens, não existem caçadores lá fora, exceto os ursos polares e crocodilos de
água salgada. No topo da cadeia, eles são os predadores da Fran. E é por causa deles que a Fran (re)existe.

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