Colunista
Da Casa ao Cais: Senhora dos Afogados no Oficina

Por Noah Mancini
Já em quase final de temporada, fui assistir a mais recente montagem de Senhora dos Afogados no Teatro Oficina. O texto de Nelson Rodrigues — vivenciado em uma casa à beira-mar — é aqui relido por Monique Gardenberg com presença expandida, incorporação de elementos audiovisuais e um ritmo dramatúrgico sustentado por música e gesto. O mar, um dos fulcros da peça, é paisagem metafórica, mas também se molha como mediador: ondas que avançam, recuam e por vezes destroem.
A peça se divide em dois atos. O primeiro, retrato de família, uma conservadora dessas. Soturnamente moral, enrijecida por dogmas que são tentados em ousar. Há as vizinhas fofoqueiras, a avó já embaralhando as ideias, a esposa recatada, fiel e do lar, um pai de caráter irrefutável com um grande cargo, um filho beberrão e iludido, uma menina promessa do triunfo debutante. Rumores que não são boatos e não passam de fatos difundem-se por boca miúda no seio familiar, o que causa a ruína daqueles pobres afortunados. Uma trama de relações às escondidas, mentiras e tramóias começa a ser desenhada, em delírios edipianos torna-se lento e arrastado o fracasso da burguesia enfadonha.
No segundo ato há a presença do devir Oficina ali. Areia no palco, praia, pouca roupa, vendedores, Gagacabana, e mais toda a performatividade latente e debochada, extravasando pelos corpos. Antes dele, havia um coro inicialmente tímido, formado pelas chamadas “putas do cais”, evocando a memória antropofágica de Zé Celso, inserindo na encenação camadas de teatralidade popular e subversiva. É nesse ponto que a montagem parece mais diretamente vinculada à herança do Oficina, no tensionar da narrativa clássica banhado de presenças múltiplas e indisciplinadas.
Lara Tremouroux está deslumbrantemente hipnótica. Sua presença em cena articula entrega corporal no tempo interno, do gesto suspenso, do olhar desviado, na contenção tensionada, na vertigem da personagem.
Marcelo Drummond carrega Misael com seriedade. Ele conduz a personagem com uma austeridade calculada, fazendo da imobilidade recurso de um peso. Ainda que por vezes sua rigidez corra o risco de cristalizar o personagem em demasia, é nela que reside a eficácia da atuação.
Mas a cena é roubada por Sylvia Prado interpretando a mãe do noivo. Não se contenta em servir de sustentação dramática: ela atravessa a cena com um denso magnetismo, entre a vulnerabilidade e a fúria, quase como lâmina expondo as fissuras da família Drummond. Num corpo veículo de forças invisíveis, reminiscências míticas, transforma suas aparições em janelas onde o espectador sente na epiderme as camadas sombrias do texto rodrigueano.
A trilha sonora é escolhida a dedo, por vezes um pouco avulsa como Alma Sebosa de Johnny Hooker, em outras assertivamente irônicas como The Time em versão de Black Eyed Peas, e também na evocação do sublime, com a interpretação de Núbia Lafayette de Hino ao Amor (em francês na voz de Edith Piaf). Se em certos momentos há contraste excessivo, a ironia pop e a melancolia da canção popular revelam uma lógica dramatúrgica que fertiliza a experiência estética da obra.
Ao final, creio que ainda encaro Senhora dos Afogados como uma montagem de transição: um rito de passagem que busca articular o luto de José Celso e a constante reinvenção do Teatro Oficina. Na tragédia em areia, ondas e desesperos, a peça não se limita a reafirmar a tradição rodrigueana ou o estilo do Oficina, mas tenta inscrever-se como gesto de continuidade.