Cinema
Altares, palanques e palácios: terra em crise

por Noah Mancini
Fui assistir, a convite de Uli, a pré-estreia do longa-metragem documental Apocalipse nos Trópicos algumas semanas atrás no Espaço Petrobrás de cinema, na Rua Augusta.
Há algo de cristalino no filme de Petra Costa. O documentário se apresenta como um artefato de época, um registro calcificado dos traumas políticos recentes, uma espécie de cápsula memorial que afirma para o futuro aquilo que, no presente, já parece irreversível. Há rigor formal, há método de pesquisa, há uma curadoria cuidadosa de imagens que selam uma narrativa bíblica – no sentido épico e absurdo da coisa.
É preciso dar nome ao gado, às ovelhas e aos pastores. É como se, neste lugar da investigadora-provocadora, também houvesse um tácito acordo de civilidade entre duas forças de antagônicos interesses. Ela quer saber, mas está no campo minado do outro. Referenciando pinturas épicas, onde a expressão da dimensão humana se curvava aos dogmas divinos, numa iconografia fatalista e das pesadas e nada invisíveis mãos superiores, Petra Costa busca ilustrar a sensação de queimação infernal e azia religiosa que paira sobre o país.
O acesso aos bastidores, ao campo onde reside o inimigo, já testemunhado em Democracia em Vertigem, agora ganha certa continuação em Apocalipse nos Trópicos. A figura de Silas Malafaia emerge como um dos eixos do filme, não como antagonista unilateral, mas como elemento pulsante da lógica que o documentário pretende diagnosticar. Destaque para as cenas onde ela o entrevista em sua residência, em seu gabinete, em seu carro particular quando entra no Palácio do Legislativo. A cineasta o observa frontalmente, mas sem caricatura; o insere no cotidiano, sem mitificá-lo nem condená-lo abertamente. E ele, surpreendentemente, acolhe o olhar.
Por outro lado, a presença de Lula no filme é um elemento necessário na composição do mosaico político. Sua imagem, já conhecida no imaginário nacional, aparece agora ressignificada. A cena em que se compromete com pautas valorizadas pelo eleitorado evangélico — que representa hoje cerca de um terço da população brasileira — é especialmente reveladora. Não há ali julgamento direto por parte da diretora, mas a montagem sugere um certo desconforto, talvez até desalento, diante do pragmatismo necessário à sobrevivência política.
Há também, por parte da diretora, um esforço metodológico em descentralizar a análise: Petra vai aos contraditórios palácios do Deus dinheirista, nos ostensivos templos de poder, mas também visita os fundos de garagens, às casas de evangélicos que vivem em comunidades e bairros periféricos – e que convenhamos, de onde sai a maior massa eleitoral deste país. Destaque para os pastores de esquerda, como o pastor Paulo Marcelo, que não concordam com a manipulação arbitrária e interesseira dos grandes líderes religiosos. Tais trechos demonstram que as coisas não são todas como parecem ser e há contra narrativas por todas as partes, que auxiliam ou afanam.
O documentário, embora sofisticado, permanece limitado por uma visão que oscila entre a denúncia do inimigo e a nostalgia de uma ordem que talvez nunca tenha existido para quem habita as margens da promessa democrática, ainda acreditando no projeto de sociedade que temos, nessa cronologia “evolutiva” ocidental, na democracia praticada como melhor solução até então encontrada – permeado por uma forte “pelegagem”. Projeta-se um lamento burguês sobre a desfiguração de uma democracia idealizada, sem se perguntar pelas formas materiais que sustentam ou esvaziam esse ideal.
Já foi dito por aí que se trata de um filme chato, talvez arrastado. Mas não teria como ser o filme uma observação agradável: trata-se do cristianismo violento e alienante, aliado à extrema-direita, influenciando na política nacional. Convenhamos, é um infeliz tema.
O olhar de Petra é contemplativo e reflexivo, ao mesmo tempo que encara o que documenta com certa curiosidade, também faz dessas interrogações derivantes o viés crítico de sua perspectiva registradora. Mesmo com suas limitações e certa inclinação a reafirmar visões de mundo já assentadas, Apocalipse nos Trópicos se sustenta. Em uma era saturada de simplificações, a diretora propõe, ao menos, uma escuta mais atenta. É um bom panorama, digamos, para analisar e apresentar a derrocada política que se aloprou na última década.