Interaja conosco

Literatura

Ana Maria Gonçalves Faz História: Primeira Mulher Negra a Ingressar na Academia Brasileira de Letras

Autora de “Um Defeito de Cor” quebra barreira de 128 anos na mais prestigiosa instituição literária do país

Publicado

em

Foto: Dani Paiva / divulgação ABL

“Benção, mãe. Benção, pai.” Com essa saudação carregada de ancestralidade e emoção, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves iniciou na noite de ontem, sexta-feira (7), seu discurso de posse na cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro. Aos 54 anos, ela se tornou a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na instituição em seus 128 anos de história, marcando um momento histórico para a literatura brasileira.

Um Marco de Representatividade

“Venho falando pretuguês, escrevendo a partir de noções de oralitura e escrevivência”, declarou Ana Maria em seu discurso, utilizando termos cunhados por importantes intelectuais negras como Lélia Gonzalez, Leda Maria Martins e Conceição Evaristo. 

A escritora, eleita em julho com 30 dos 31 votos possíveis, é agora a 13ª mulher a integrar o quadro de imortais da Casa de Machado de Assis. Durante a cerimônia, ela fez questão de homenagear as pioneiras que vieram antes, citando nomes como Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e outras que abriram caminho para sua chegada.

“Depois do apagamento de Júlia Lopes de Almeida, das candidaturas negadas de Amélia Beviláqua e Diná Silveira de Queiroz, viemos nós: Raquel, Lygia, Nélida, Zélia, Ana, Cleonice, Rosiska, Fernanda, Lília, Miriam e eu. Ainda somos poucas para tanto trabalho de reconstrução do imaginário sobre o que representamos”, disse Ana Maria, emocionada.

A Força de “Um Defeito de Cor”

Ana Maria Gonçalves se consagrou na literatura brasileira com o romance “Um Defeito de Cor” (2006), obra monumental de 952 páginas que narra a trajetória de Kehinde, uma mulher africana escravizada no Brasil. O livro, inspirado nas figuras históricas de Luiza Mahin e seu filho Luiz Gama, levou cinco anos para ser escrito, dois de pesquisa intensa, um de escrita e dois de reescrita.

Com mais de 200 mil exemplares vendidos, “Um Defeito de Cor” foi eleito pela Folha de S.Paulo como o melhor livro da literatura brasileira do século 21, em votação com 101 especialistas. A obra também ganhou vida nas passarelas do Carnaval carioca, sendo tema do desfile da Portela em 2024, o que disparou as vendas e tirou o livro “da bolha literária”, nas palavras da própria autora. 

Uma Trajetória de Superação

Natural de Ibiá, interior de Minas Gerais, Ana Maria Gonçalves nasceu em 1970 e inicialmente seguiu carreira na publicidade, atuando em São Paulo por 13 anos. Só mais tarde decidiu se dedicar integralmente à literatura, estreando em 2002 com “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim”.

Além de escritora, Ana Maria atua como roteirista, dramaturga e professora de escrita criativa. Já morou nos Estados Unidos, onde ministrou cursos e palestras sobre questões étnico-raciais, e atualmente vive em São Paulo, escrevendo para televisão, teatro e cinema.

Reconhecimento do Impacto

Durante a cerimônia, que contou com a presença de 300 convidados em sua maioria pessoas negras, diversos intelectuais e artistas destacaram a importância histórica do momento. O compositor Gilberto Gil, responsável pela entrega do diploma, definiu Ana Maria como “uma das grandes artesãs da palavra”, destacando sua “consciência profunda sobre o que é ser negro no Brasil”.

O ator e escritor Lázaro Ramos chamou “Um Defeito de Cor” de “o livro de sua vida”, afirmando: “Foi o livro que mais dei de presente. É o primeiro que me provocou sensações físicas, eu chorava, ria, sentia cheiro, textura. A escrita da Ana é muito especial.”

Uma Conquista Coletiva

Conceição Evaristo, cuja candidatura à ABL em 2018 gerou importantes debates sobre diversidade na instituição, definiu a posse de Ana Maria como “uma conquista que representa todas nós, mulheres negras e escritoras”. Durante o discurso, quando Ana Maria citou seu nome, Conceição foi ovacionada de pé pela plateia.

“É como se estivéssemos todas dentro da Academia hoje. Um defeito de cor cobre lacunas que a história deixa. Quando a história silencia, a literatura fala”, declarou Conceição Evaristo.

Compromisso com a Diversidade

Em seu discurso, Ana Maria assumiu um compromisso claro com a transformação da ABL: “Assumo como missão promover a diversidade nesta Casa, abrir suas portas ao público verdadeiro dono da língua e ampliar o empenho na divulgação e promoção da literatura brasileira.”

A escritora também fez questão de citar a importância das candidaturas de Conceição Evaristo e Ailton Krenak para ampliar o debate sobre representatividade: “A discussão em torno da candidatura de Conceição Evaristo, em 2018, contribuiu para que eu esteja aqui hoje. Fez com que a Academia se olhasse no espelho e percebesse o quanto ainda falhava em representar todas as línguas faladas pelo nosso povo.”

Celebração da Ancestralidade

O momento mais emocionante da cerimônia foi quando Ana Maria encerrou seu discurso agradecendo “à minha ancestralidade, fonte inesgotável de conforto, fé, paciência e sabedoria.” Até mesmo o jantar posterior foi pensado para homenagear essa herança: preparado pela chef Dilma do Nascimento (Dita), o cardápio foi inspirado em “Um Defeito de Cor”, com pratos africanos e encerrando com as cocadas vendidas pelas personagens em busca da liberdade.

Um Brasil que se Reconhece

A acadêmica Miriam Leitão resumiu bem o significado do momento: “A entrada dela tem uma camada de representatividade fundamental. Ela traz a força da mulher e da literatura negra para dentro desta Casa. A Academia está mudando o que precisa ser mudado e conservando o que precisa ser conservado.”

Para Lázaro Ramos, a presença de Ana Maria na ABL “é o Brasil reconhecendo talentos que demoraram a ser reconhecidos. A presença dela aqui é de justiça e diversidade. É o que a Academia merece e precisa.”

Ana Maria Gonçalves ocupa agora a cadeira 33, anteriormente ocupada pelo gramático Evanildo Bechara, que morreu em maio deste ano aos 97 anos. Como ela mesma brincou ao citar a progressão da longevidade dos ocupantes da cadeira: “Como podemos ver, há uma progressão. Rumo à verdadeira imortalidade.”

Este 7 de novembro de 2025 ficará marcado como o dia em que a literatura brasileira deu um passo fundamental rumo à representatividade, com a posse da primeira mulher negra imortal em 128 anos de Academia Brasileira de Letras.

Fonte: Agência Brasil e Folha de S.Paulo.

Seja nosso parceiro2

Megaidea